Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

Questões muito pessoais

A análise de nossa conduta política não desqualifica nossas escolhas

Ilustração
Mariza Dias Costa/Folhapress

Assisti a "Uma Questão Pessoal", dos irmãos Taviani (de fato, o roteiro é dos dois, a direção, só de Paolo --Vittorio morreu sem codirigir o último filme).

Queria muito ver como eles contariam a história do guerrilheiro Milton, de "Una Questione Privata" ("Uma Questão Pessoal", Berlendis e Vertecchi), romance de Beppe Fenoglio que, como a maioria das obras do autor, foi publicado após a morte dele, em 1963.

Para homens e mulheres que, de 1943 a 45, pegaram em armas contra o fascismo, a Resistência foi uma espécie de momento da verdade. Alguns lutaram, voltaram e nunca mais falaram disso. Outros, como Italo Calvino, escreveram um livro e seguiram em frente. Outros ainda, como Fenoglio, foram definidos pela experiência da Resistência para o resto da vida (que, no caso de Fenoglio, foi curta, morreu aos 41 anos).

Um dia, visite a região das Langhe, entre Alba e Cuneo, no Piemonte —pode ser uma viagem gastronômica, entre trufas e doces de castanha europeia. Leve, como guias, "Il Partigiano Johnny" e "Uma Questão Pessoal". Acho que ainda existem percursos turísticos, organizados seguindo os passos de Johnny e Milton.

Li "Uma Questão Pessoal" nos anos 1970. No romance, Milton tem um amigo do peito, que é também rival amoroso. Quando o amigo é preso pelos fascistas, Milton passa a agir por uma "questão pessoal".

Enquanto lutamos para mudar o mundo (ou para impedir que mude), qual pode ser a relevância das questões e dos afetos "pessoais"?

A ideia, nos anos 1970, era que o social passaria antes de qualquer razão privada. Circulavam dilemas morais "edificantes": caso se revelasse justo denunciar nossos pais social-democratas à polícia política (estalinista) de nosso futuro paraíso, será que hesitaríamos?

O coletivo tinha prioridade absoluta. Diante dele, os sentimentos seriam uma mesquinharia pequeno-burguesa.

Curiosamente, dez anos mais tarde, eu pensaria que não há posição política e conduta a favor de um suposto interesse coletivo não comandadas por razões absolutamente "pessoais".

A gente milita, age, lança paralelepípedos, desfila, distribui panfletos —​tudo isso, em última instância, só por uma razão pessoal, que a gente em geral desconhece.

Meu pai era um resistente não comunista, como Fenoglio. À diferença de Fenoglio (que já na época traduzia clássicos do inglês), ele encontrava suas referências literárias no romantismo alemão.

Como sei disso? Porque herdei (e li, claro) 50 anos de diários dele, inclusive os dos anos de guerra e Resistência.

As menções ao conflito são mínimas; os grandes temas são leituras de Novalis, Lessing, Schopenhauer e Nietzsche, com quem ele discutia na tentativa de dar sentido à sua existência. Naquele momento, a existência era a luta contra a vulgaridade da guerra e do fascismo, mas isso mal aparece: entre balas, bombas, mortos e feridos, questões existenciais e sentimentos amorosos parecem falar mais alto do que qualquer doutrina política.

Seja como for, nos anos 1980 a psicanálise (a começar pela minha própria) me convenceu de que qualquer militância tem sua origem em uma ou algumas "questões pessoais".

A análise das razões pessoais de nossa conduta política não desqualifica nossas escolhas. Um exemplo bem grosseiro (as razões da escolha política são mais profundas, em geral): suponhamos que você descubra que escolheu ser socialista porque imaginou que seu pai fosse abusivo com uma dependente de quem você queria muito ser o paladino defensor. Essa descoberta é relevante na sua análise e na sua vida, mas tudo isso não compromete o valor de sua escolha socialista.

Mais exemplos. Você é Bolsonaro porque odeia aquela burguesia letrada que não reconhecia seu pai e sua mãe como semelhantes. Lembra-se que não deixavam você brincar no parquinho do condomínio, quando seu pai visitava clientes, e você subia no elevador de serviço, onde só tinha negros e empregadas. E você não queria ser confundido com eles.

Ou, então, você milita na esquerda porque fantasia eroticamente com uma cena em que seria estuprado e linchado por peões musculosos e iletrados.

Em nenhum caso, sua "questão pessoal" desqualifica sua escolha política e os motivos racionais pelos quais você a defende. Ou seja, há questões pessoais e fantasias eróticas para ser fascista ou antifascista. Mas a oposição de fascismo e antifascismo tem um valor racional, sejam quais forem as motivações privadas pelas quais a gente se situa de um lado ou do outro.

Fato curioso (e um pouco inquietante). Mesmo na Europa, o esquecimento funciona bem, a médio e longo prazo. E é sempre possível se esquecer do que deveria ser irrenunciável. Não há na Itália uma avenida Mussolini ou, na Alemanha, um curso Hitler. Também não há, na França, uma rua Maréchal Petain --e Petain, antes de inventar o fascismo francês, foi o general que ganhou, para a França, a batalha de Verdun e, com ela, a Primeira Guerra Mundial. Enquanto isso, a gente por aqui continua circulando na avenida Castello Branco.

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