Contardo Calligaris

Psicanalista, autor de 'Hello Brasil!' (Três Estrelas), 'Cartas a um Jovem Terapeuta' (Planeta) e 'Coisa de Menina?', com Maria Homem (Papirus). Morreu em 2021.

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Contardo Calligaris

A família e o sexo

Quem quiser valorizar a família faria melhor se não a transformasse em repressão

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No começo dos anos 1970, Paris era um parque de diversões. O presidente Georges Pompidou, que concebeu o centro que carrega o seu nome, detestado por parte da esquerda, era um liberal, um homem de letras, racional, sem simpatia pela direita católica da Action Française —talvez, aliás, fosse um tanto libertino. Resultado: a cultura francesa floresceu como nunca, e a vida noturna parisiense, também.

Nos sex shops da rua Saint Denis ou de Pigalle, era possível encontrar mapas noturnos do grande parque ao oeste de Paris: o Bois de Boulogne. 

Você podia aprender onde oficiavam travestis e transexuais, onde mulheres fellinianas prendiam seus clientes entre duas árvores e os açoitavam com gosto, onde era possível fazer sexo apimentado pelos olhares dos voyeurs e, enfim, onde se reuniam as surubas. 

De vez em quando, aparecia na imprensa a carta de um “cidadão de bem” escandalizado. Mas o que todos se perguntavam era: por que diabo o tal cidadão se aventurara no meio do bosque de madrugada? Ele esbarrara em algo que não queria ver ou fizera de tudo para ver e, portanto, dizer-se ultrajado?

Ilustração
Mariza Dias Costa

Nestes últimos dias, só pude pensar nas conversas daquela época sobre o que constitui um ato obsceno em lugar público. Se você entrar num cinema pornô do centro, vai se dizer ofendido porque um casal, ao seu lado, faz sexo oral? 

E se você for a um bloco de Carnaval que se chama Blocu, pode se dizer ofendido porque alguém brinca com seu ânus ou mostra o pinto e faz xixi em outra pessoa? Bizarras, para mim, foram as reações. 

“Veja aonde chegamos!” Pois bem, chegamos ao lugar muito familiar de onde nunca saímos: entre fezes e urina, onde se situam os órgãos de nossa sexualidade.

“Isso não pode continuar. As pessoas não podem achar isso normal.” Pois bem, as brincadeiras dos dois artistas (eles declararam ser uma performance) não têm nada de extremo. 

O sexo anal é trivial, nas relações hétero e homossexuais; crianças pequenas brincam com seu dedo e o seu ânus quando começam a se masturbar. Quanto ao xixi, é suficiente ter tentado ajudar uma criança com enurese noturna para saber que a micção tem um valor erótico desde muito cedo. 

Enfim, tanto o “fingering” (não é preciso perguntar no Twitter: significa “a dedada”) quanto o golden shower são práticas sexuais tão comuns que já foram temas de artigos de revista feminina, entre elas a Cosmopolitan.

Diante da ingenuidade de quem se escandaliza ou não entende do que se trata, só resta concluir que é preciso mesmo aprofundar e detalhar as cartilhas de educação sexual distribuídas nas escolas. Mas talvez esse seja um problema de velhos que cresceram na censura ou sem internet.

Nota: quando o Blocu passar na rua da minha casa, minhas crianças decidirão se ficarão na sacada ou não, mas entendo, obviamente, que outro cidadão não queira que seu filho ou sua filha assista à tal performance.

Enfim. Depois de sua indignação no Twitter, o presidente Bolsonaro declarou que governa o país ao lado daqueles que “respeitam a família”. 

Alguns comentadores entenderam que ele continuava a birra com os artistas do Blocu —ou seja, entenderam que a família seria o que se opõe aos excessos do Carnaval e do sexo.

Agora, eu sou cristão demais para fazer da família um valor em si; mesmo assim, reconheço que a família é o que inventamos de melhor para criar filhos e nos reproduzir social e culturalmente. 

Mas cuidado: se quisermos que a família continue exercendo essa função, não podemos invocá-la como a instituição que deveria reprimir o desejo e as fantasias sexuais dos casais. Se pedirmos da família que ela sirva para normalizar a vida sexual, vamos condená-la a desaparecer num mar de tédio sem amor.

Ao redor da estação Porte Dauphine, na Paris dos anos 1970, nas noites de sexta e de sábado, era um vaivém de casais, que procuravam companhia para fazer a festa. O Bois de Boulogne se tornava uma espécie de casa de swing a céu aberto.

Desde aquela época, os casais mais unidos que encontrei, inclusive na tarefa de criar seus filhos, sempre foram aqueles para quem a família não era um sacrifício —não valia pela repressão, mas pela aventura de inventar a vida juntos (inclusive a sexual).

Quem quiser realmente valorizar a família faria melhor se nunca a transformasse em pretexto para repressão. Ela não serve para isso. Serve para facilitar o acesso à variedade dos desejos por parte de todos seus membros.

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