Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

A descrição literária

Com a expulsão do Paraíso do narrador onisciente, as descrições passaram a ser antes mentais que físicas

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Ilustração Cristovão Tezza
Vânia Medeiros/Folhapress

Escrevendo sobre Daniel Defoe (1660-1731), autor das célebres aventuras de Robinson Crusoe, o romancista J. M. Coetzee observa que, pela primeira vez na história da ficção, encontram-se páginas e páginas com descrições minuciosas de "como as coisas são feitas".

Coetzee discute a natureza do realismo de Defoe, que não usa a palavra "romance" para definir o gênero de seu livro, inscrito na longa tradição das confissões de um pecador que se redime.

O fundo moralizante ainda é a linguagem do seu tempo, em que "a ideia de representar a vida diária sem intenção didática teria sido estranha e suspeita". ("Stranger Shores -- Literary essays", Penguin Books. Cito em tradução livre.)

Entretanto, não é nas lições de moral, mas na "descrição de como as coisas são feitas" que reside a essência da vida solitária de Robinson Crusoe em sua ilha, após o naufrágio. Vão aí também os sinais de um novo tempo, em que o trabalho manual, ou a simples ideia de trabalho, passa a ser por si só um foco literário respeitável, que merece a dignidade da arte da escrita. Coetzee chama o realismo de Defoe de "empírico".

As descrições realistas (do ambiente e do mundo prático) terão um papel especialmente importante no romance do século 19, até por pura função informativa da nova cultura urbana: a classe média nascente podia agora vislumbrar detalhes da vida inacessível dos nobres e ricos nas páginas de Balzac e de Tolstói.

A sua ausência já antecipava o século 20, em que um mundo quase puramente mental tornou-se o eixo da especulação literária: Dostoiévski, por exemplo, descreve muito pouco do espaço físico e, entre nós, são raríssimos os trechos descritivos em Machado de Assis (compare-se com qualquer página de José de Alencar e se terá medida do abismo de distância).

O império do cinema no século 20 destruiu o status descritivo original da literatura. Com a expulsão do Paraíso do velho narrador onisciente, que via tudo e entrava em todas as cabeças, as descrições literárias passaram a ser antes mentais (ou mais abstratas) que físicas (ou referenciais), basicamente solipsistas, como se nos movêssemos entre paredes de nuvens.

Mas surgiu uma exceção curiosa, criada pelos best-sellers —a descrição detalhada, às vezes enciclopédica, de procedimentos científicos, atividades especializadas ou ambientes tecnológicos, cuja leitura dá ao leitor distraído uma sólida sensação de imersão cultural.

Um modelo típico é o romance "Aeroporto", de Arthur Hailey, de 1968, que descreve tudo que faz um aeroporto funcionar, dos controladores de voo às emergências do tempo; os personagens, todos esquemáticos, estão ali mais a serviço da informação do que o contrário.

A prosa de ficção, que absorve todos os discursos, vive de reciclagens periódicas. Pois acabo de ler um livro que sugere uma variante desse "realismo de procedimentos": "Coração e Alma", de Maylis de Kerangal (Editora Rádio Londres, trad. de Maria de Fátima Oliva do Coutto), uma escritora francesa ainda pouco conhecida no Brasil.

O tema do romance é um transplante de coração: narra-se, sob uma moldura ficcional, o que acontece, do ponto de vista prático, quando se faz um transplante de coração.

Há trechos assim: "Ela usa o sistema HLA para examinar a compatibilidade tissular [...]. O código HLA (Human Leukocyte Antigen) é a carteira de identidade biológica do paciente e tem um importante papel na sua defesa imunológica." Os personagens são apenas andaimes deste centro narrativo.

A novidade é que agora o narrador, que tudo sabe e tudo explica, extrai da tecnologia um deslumbrado kitsch poético, que igualmente tudo concilia —o milagre da ciência é em si um milagre existencial:

"Mas o centro cirúrgico é o único espaço onde ele se sente vivo de verdade, onde consegue expressar quem é, sua paixão atávica pelo trabalho, seu rigor maníaco, sua fé no homem, sua megalomania, seu desejo de poder; ali ele convoca sua linhagem e recorda, um a um, os homens que criaram a ciência dos transplantes [...], autocratas de uma audácia louca".

Esses surtos épico-transcendentes que pontuam a narrativa dão o tom do romance, como se agora, quatro séculos depois de Robinson Crusoe, fosse a alma divina da ciência, e não o trabalho beneditino dos mortais, que redimisse o pecador.

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