Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza
Descrição de chapéu

Finlândia

A felicidade tranquila tem suas qualidades; andamos muito pessimistas

Ilustração
Vânia Medeiros/Folhapress

A ideia de que algo extraordinário vai acontecer sempre me acompanha no impulso das viagens. O que eu não imaginava é que o extraordinário, desta vez, ficaria para trás, no Brasil, enquanto eu me afastava cada vez mais, no fuso horário, no espaço, no tempo, na cápsula voadora, em direção à normalidade, lá do outro lado do mundo. Há um toque darwinista no ato de embarcar num avião, com a bovina organização das filas, as pessoas momentaneamente escoteiras procurando seu lugar, na bizarra classificação por classes, números, prioridades, cartões especiais.

E até mesmo idade —é o único momento em que não lamento a quantidade de anos que vivi, o que me garante entrar antes dos outros. Essa vantagem é mais uma jabuticaba brasileira. Se fizessem o mesmo nos países tradicionalmente civilizados, a fila das prioridades seria muito maior do que as outras. Liberado o povo para o funil do avião, vamos controlando o instinto de levar vantagem em tudo, da conquista do espaço para a bagagem de mão ajeitada nos buracos acima, até a ginástica cuidadosa e provisoriamente definitiva do encaixe do corpo nos assentos, de onde em geral só nos levantaremos, como molas disparadas e aflitas, no exato instante em que os motores se desligam, ao final da viagem.

A impressionante rede de organização logística do mais perfeito e seguro meio de transporte jamais inventado —é mais garantido eu me manter vivo indo à China acompanhando pelo alto a curvatura da Terra ao longo de 24 horas, do que descendo à praia, de carro, num trecho de hora e meia— nos dá a impressão de uma absurda fragilidade, um gigantesco castelo de cartas que se movem sem desabar. Vou deixando o Brasil para trás, e para baixo, e avanço em direção à Finlândia, o que pela simples sugestão do nome soa como uma espécie de limite do mundo.

Será a Finlândia a Utopia? Uma jornalista me diz que, na Finlândia, é proibido por lei cobrar pelo ensino, de modo que o filho do deputado, necessariamente, sentará ao lado do filho do gari na mesma sala de aula; mas imagino que, ao mesmo tempo, pagará o preço que pedirem pelo litro de gasolina (em torno de R$ 7), porque as coisas todas têm um custo. 

Quando tudo é de graça, a vida fica muito cara para quem não pode pagar por fora ou não tem isenções, penduricalhos ou auxílios-tudo. Utopias são projeções sem história, puras ideias, frutos do desejo que, do nada, parece refazer o mundo, inventando uma espécie de humanidade felizmente desprovida de pessoas reais, que, como sabemos desde crianças, só incomodam.

Já que eu ia para lá, precisava entender previamente a Finlândia, seguindo meu velho método de mestre-escola (estude, rapaz!), e mergulhei nos filmes de Aki Kaurismäki (“O Homem sem Passsado”, “Nuvens Passageiras”, “Contratei um Matador Profissional”), em busca de alguma essência nacional. O que é outra abstração, mas misteriosamente mais palpável. Por exemplo: é muito difícil definir o que é um brasileiro, se é que existe um padrão, mas o reconhecemos em qualquer lugar do mundo só pelo jeito de andar.

E o que será um finlandês? Kaurismäki (um cineasta amado no país; basta citar seu nome e os finlandeses sorriem) filma como quem desenha histórias em quadrinhos, em tomadas hieraticamente imóveis, com poucas falas e silêncios curiosamente engraçados, cores básicas e exuberantes, e uma simplicidade chapliniana num espaço nostálgico, antigo, decadente. 

Há mais pobres nos seus filmes do que na Finlândia inteira. E não encontrei em Helsinque nenhuma parede com tinta descascada, como as que abundam em suas imagens. Entretanto, todos os seus personagens são iniludivelmente finlandeses, vivendo sob uma camada misteriosa de bom humor, um otimismo subterrâneo, o que aqui se sente em toda parte.

Bem, além dos índices muito altos de renda e qualidade de vida, há uma razão específica para tanta felicidade: o sol. Nesta época do ano, os dias são longuíssimos na Finlândia, maravilhosamente luminosos. Às onze da noite ainda é dia; às três e meia, amanhece. Uma multidão eufórica de finlandeses enche festivamente as ruas, como um povo que, todos os anos, num curto espaço de tempo, emerge alegre das sombras para respirar. 

Caramba, a Finlândia é mesmo fantástica. A felicidade tranquila tem suas qualidades. Acho que andamos muito pessimistas. Proponho oito meses de noite para o Brasil, todos os anos. Que alegria raríssima e inesquecível seriam as manhãs!

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