Cristovão Tezza

Ficcionista e crítico literário, autor de “O Filho Eterno” e “A Tirania do Amor”.

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Cristovão Tezza

O futebol e o sentimento trágico

Neymar espelha o Brasil com a consistência emocional de uma porcelana

Ilustração
Vânia Medeiros/Folhapress

As Copas do Mundo criaram minha paixão pelo futebol, bem antes que eu descobrisse o meu querido Clube Atlético Paranaense. Começou em 1958, de que tenho vaga lembrança de rádio e euforia, reforçou-se em 1962, frustrou-se em 1966 e consolidou-se, definitiva e ambivalente, em 1970.

Afinal, a vitória daquele time que me soava invencível era também a propaganda da ditadura, com a figura sinistra de Médici e seu radinho de pilha no ouvido. Com 17 anos, o mundo parecia se dividir para sempre.

Nas décadas seguintes, o futebol se manteve, entretanto, a minha saudável reserva irracional, espaço misterioso e eficiente de catarse, exercício de simpatias e antipatias inexplicáveis, admirações exageradas e maldições terríveis, teorias súbitas e iluminadoras que se esfarelam em dois apitos, sofrimentos agoniantes e alegrias histéricas: enfim, como torcedor, um perfeito Napoleão de hospício.

Nada que não se resolva: no minuto seguinte à peça de teatro de hora e meia, purificada a alma conforme preconizava Aristóteles, vivido intensamente o sentimento de horror diante do inelutável destino (sim, não adianta espernear, Édipo matará o pai, Romeu e Julieta não viverão felizes para sempre, Desdêmona morrerá nas mãos de Otelo —mas no jogo do meu time, de que lado estão os deuses?), retorno rapidamente ao normal (digamos assim), e o futebol volta a ser, à falta de uma religião melhor, apenas o velho e bom ópio do povo que sempre foi.

A insaciável corrupção do futebol, que, como um dedo sujo de Midas transforma em propina tudo o que toca, não afeta em nada a sua sedução e seu absurdo poder simbólico.

Trágico, violento, carnavalesco, místico e tribal, o futebol é o mais caótico e incontrolável dos esportes. São 22 atletas girando em torno de uma bola que —à exceção dos dois goleiros, guardiões simultaneamente do Céu e do Inferno— só pode ser tocada com pés, pernas, troncos e cabeças, que, convenhamos, não foram feitos para isso.

Organizar e administrar a explosão de partículas que se põem em movimento aleatório assim que o juiz apita, por meio de engenhosas equações (4-4-2? 4-3-2-1? 9-1? 10-0?), como se se tratasse de uma mesa de pebolim, é a fantasia de Sísifo que compete aos técnicos: métodos de controlar o caos.

Como quase nunca dá certo, ou dá certo pelo motivo errado, a cada bola parada o sonho recomeça. A luta sem fim é suprimir o poder do acaso que decide o jogo: a bola na trave, o falso impedimento, o escorregão na grama, a distração mortal, o desvio caprichoso.

Como são 22 em jogo, e cada um tem vida própria, o acaso reina e decide, soberano. São infinitas variáveis em jogo, todas em torno de um eixo avulso fundamental e inescrutável: o jogador.

Faço uma digressão: às vezes me perguntam se a boa literatura é fruto do dom ou da técnica. Com uma adaptação podemos pensar o mesmo do talento em campo, mas como no esporte o dom se confunde com a técnica, o contraste se dá de fato entre a inteligência e a técnica.

Bem, se a técnica é um conceito objetivo (reconhecemos um perna de pau em meio minuto), a inteligência costuma ser um pântano sob neblina. Tem a inteligência que soma 2 + 2, o tirocínio abstrato que parece brotar do nada, e tem a que equilibra e centra a vida, e se cultiva a partir da primeira: a inteligência emocional.

Claro que um jogador inteligente com grande técnica é o ideal, mas um Cristiano Ronaldo não dá em árvore. O centramento dele é quase o de um psicopata, o jogador que às vezes carrega um time nas costas e às vezes perde um pênalti, a guilhotina do jogo. O jogador centrado: eis a raridade, o Pelé, ainda mais porque esta é uma qualidade que em geral só vem com a idade, que conspira contra o futebol.

O caso Neymar parece um contraponto teórico. Gênio absoluto da técnica barroca que o brasileiro ama desde Garrincha, ao mesmo tempo tem a consistência emocional de uma porcelana, o que também lembra o país de onde ele veio e a seleção de que faz parte.

Espelhando o Brasil, há ruído emocional demais em torno dele, que Neymar absorve como uma esponja, para, em cada novo gol de gênio, devolver ao público, o inimigo imaginário, não como festa, mas como vingança.

É a catarse de um país que sempre derrapa no seu fracasso inexplicado, e, mesmo na vitória, corre atrás de uma culpa alheia para nela ressentir-se. Porque, se no futebol a derrota é sempre tragédia, a vitória nunca terá a leveza da comédia.

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