Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim

Agatha Christie e o misterioso caso do coquetel fantasma

Personagem da escritora assassina satan's whiskers; fato exige investigação

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"Essa casa é horrível. Ficou parada no tempo. Nunca vi sombra de coquetel por aqui. É só xerez ou uísque antes do jantar e um conhaquinho depois. Richard é incapaz de preparar um manhattan decente e nem adianta pedir whisky sour para o Edward. Agora, o que realmente iria deixar a Lucia boa seria um satan's whiskers."

Quem o diz é a sobrinha de um cientista, um Oppenheimer avant la lettre. Pesquisador de energia atômica, Sir Claud Amory inventou uma bomba poderosa, cuja fórmula foi roubada. Reúne a família numa sala e tranca a porta, com o objetivo de descobrir o ladrão. As luzes se apagam e —ele aparece morto.

Assim é "Café Preto", primeira peça de Agatha Christie a ser encenada, em 1930. O título refere-se ao método do assassino: veneno no café. Em 1998 a peça foi romanceada por Charles Osborne, biógrafo da escritora, com permissão da família.

No entanto, há um desequilíbrio molecular no livro: outra fórmula explosiva aparece alterada. Bárbara, a sobrinha, explica como fazer o coquetel para levantar os ânimos de Lucia, a nora do cientista.

"É bem simples, se você tem os ingredientes. Basicamente, partes iguais de conhaque e crème de menthe, mas não se deve esquecer de pôr um pouco de pimenta vermelha. É essencial. É super gostoso, além de dar mais energia para o corpo."

Parece bom. O problema é que, tirando a pimenta, essa é a receita do stinger, aquele, o drinque favorito de Cary Grant. Fica a pergunta: Agatha, apreciadora de boas misturinhas, teria se enganado? Ou o coquetel não consta da peça e Osborne é quem deu o passo em falso? Seja quem for o culpado, o caso é grave e merece investigação. Peçamos ajuda às pequenas células cinzentas.

O problema é encontrar a peça. A versão romanceada tomou conta das livrarias. Fosse "A Ratoeira", que ficou uma eternidade em cartaz, seria mais fácil. A cronologia talvez facilite. O stinger teria surgido em 1890. Já o satan's whiskers é de 1930, mesmo ano em que "Black Coffee" subiu ao palco.

A escritora inglesa Agatha Christie - BritBox/BBC Studios via Reuters

Portanto, se o coquetel foi mencionado diante do público londrino, é um caso de bicho de duas cabeças, nome de um, corpo de outro. Ou haveria um satan's whiskers inglês? Se havia, não é mencionado em nenhum dos grandes livros de coquetelaria. Christie pode ter inventado o drinque. Mas o mais provável é que Osborne seja o nosso criminoso. Juntou alhos com bugalhos, bateu com gelo e botou, confiante, a confusão no balcão da literatura policial. Poirot, o detetive da história, diria: "O assassino é sempre um velho amigo da vítima".

Há outra coincidência nessa história de nomes trocados e assassinato de receitas: "Black Coffee" estreou no teatro Embassy, em Londres (hoje uma escola de "speech and drama"), ao passo que o satan's whiskers surgiu no Embassy Club, em Los Angeles, onde hoje é o Museu de Cera.

Era um dos points da Hollywood do início dos anos 1930, durante a Lei Seca. As maiores estrelas e astros da época, como Charlie Chaplin e Mary Astor, iam a esse bar clandestino de luxo. Muitos levavam um frasco de bolso para ser complementado. Variação do bronx, coquetel nova-iorquino de 1906, o satan's whiskers era uma das atrações da casa. Diabólico, garante o nome. Mesmo sem pimenta.

O satan's whiskers - 5ph - stock.adobe.com

SATAN'S WHISKERS

15 ml de gim

15 ml de vermute doce

15 ml de vermute seco

15 ml de licor de laranja

15 ml de suco fresco de laranja

Um lance de bitters de laranja

Bata os ingredientes com gelo e coe para uma taça coupe gelada. Use uma fatia de laranja para a guarnição.

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