Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gelo e gim
Descrição de chapéu cachaça

O hi-fi girava solto nas festinhas dos anos 1960

Bebida com vodca e refrigerante era fiel à transição entre adolescência e vida adulta

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

No livro, filme e série "Alta Fidelidade", brinca-se com a ideia da traição amorosa e a tecnologia de áudio de mesmo nome. O aparelho de som deve, acima de tudo, ser fiel à gravação, um caso de amor do disco com a vitrola. Num relacionamento fechado a frequência modular é a mesma. O casal faz música juntos, no diapasão da pele. Se ele ou ela passar a ouvir as notas que vêm do apartamento de cima, vira bolero.

Nos anos 1960, o hi-fi, diminutivo de high fidelity (alta fidelidade), era a pedida nas festinhas de apartamento. O conceito de balada estava no embrião. Os jovens se reuniam na sala de alguém descolado, afastavam os móveis e se punham a dançar. No prato, giravam Beatles, Bossa Nova, Jovem Guarda, jazz.

As bebidas eram fiéis à transição entre a adolescência e a vida adulta. Cuba libre e hi-fi, ambas com refrigerante. Assim, os respectivos rum e vodca ficavam toleráveis para os paladares pueris. Era como brincar de beber. Só que a sério. Quem ameniza o sabor, exagera na quantidade. Ainda mais quando está em jogo a tarefa impossível de tirar uma moça para dançar.

John Cusack em cena do filme 'Alta Fidelidade' - Divulgação

O cuba libre é popular no mundo todo. Já o hi-fi é coisa nossa. Como tal, sumiu no tempo. O nome vem do primeiro programa de TV para jovens, "Crush em hi-fi", de 1959, na TV Record. O patrocinador era justamente o refrigerante paulista de laranja, Crush. Quem apresentava eram os irmãos Tony e Celly Campello, na esteira do sucesso dela com "Estúpido Cupido". Dizem que foi aí que nasceu o rock brasileiro.

Rita Lee viria uns anos depois. Na sua autobiografia, a Rainha Mutante conta da hi-fi, a famosa loja de discos inaugurada em 1960, um dos únicos lugares em São Paulo onde se encontravam bolachas de responsa. "Esperei horas na fila para comprar o primeiro LP dos Rolling Stones." Ali perto, Ronnie Cord descia a "rua Augusta a 120 por hora".

Sérgio Porto, ou Stanislaw Ponte Preta, conhecia bem os dois assuntos: o som e o furor. De toda espécie. Escreveu uma crônica zoando com os fiscais voluntários do juizado de menores. Tomados pelo dever pátrio, invadiam "inferninhos, boates, bares, caves e covas onde rebola o iê-iê-iê" e abusavam da já pequena autoridade para pedir carteirinha aos jovens e cheirar o conteúdo de seus copos, em geral álcool camuflado, como o hi-fi. A cirrose oficial vinha pela "ginástica respiratória".

Num trecho curioso, ele fala por hieróglifos. É quando menciona os menores que fingem tomar "refrigerantes ditos inocentes", e então desfia um bestiário etílico: "na verdade, estão castigando um samba em berlim, cuba-libre, hi-fi, ‘mamãe-eles-são-de-família’, ‘um-balde-tigre’, ‘baile-de-preto’, ‘embalo-de-onça’ ou ‘contragolpe-do-gargalo’, que é uma mistura tão maldita que, quando servem, o copo vem saindo fumaça azul".

Vale um esforço enciclopédico para desvendar essa pedra de Roseta. Só o samba em berlim tem registro fácil. Trata-se de um cuba libre com cachaça no lugar do rum. Os demais rolaram para o esquecimento. Ou mataram alguns fiscais pelo nariz e foram banidos.

Há 60 anos, o intrigante contragolpe-do-gargalo teria sido bom. Nem que fosse pela força do nome. Quem sabe fazia um estrago nos fiscais de galardões e medalhas que fecharam o bar Brasil.


HI-FI

45 ml de vodca

15 ml de cachaça

300 ml de refrigerante de laranja

Num copo alto com bastante gelo, ponha a vodca e a cachaça. Finalize com o refrigerante, mexa de leve e decore com uma fatia de laranja.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.