Gelo e gim

Coluna é assinada pelo jornalista e tradutor Daniel de Mesquita Benevides.

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Gelo e gim
Descrição de chapéu Zé Celso (1937-2023)

Um coquetel inspirado em Zé Celso e Chico Buarque

Receita usa ingredientes das garrafas na garagem do cantor, com cachaça e licor de laranja

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Havia cheiro de golpe no ar. Chico Buarque tinha 19 anos. Ainda era um desconhecido estudante da faculdade de arquitetura e urbanismo da USP. Sem ser filiado a partido algum, mostrava simpatia pelos grupos de esquerda. Ia a reuniões e assembléias, "meio gaiatamente", como dizia. Confiava na união dos estudantes e na mobilização do povo.

Na perspectiva de uma reação ao iminente avanço dos tanques, guardou garrafas de cachaça Pitu e conhaque Dreher, "que era o que se podia beber", na garagem de sua casa, para fazer coquetéis —molotov —não sem antes esvaziá-las recreativamente, como conta Humberto Werneck no livro "Tantas palavras". Infelizmente os tanques passaram e a reação, onde existiu —e Brizola é o primeiro nome que vem à cabeça—, não foi suficiente para pará-los. A mobilização geral ficou diluída e as garrafas de Chico apagadas, encostadas num canto, testemunhas melancólicas do começo dos anos de chumbo.

Zé Celso se preparando em frente ao espelho no camarim para atuar na peça 'Roda Viva' no Rio de Janeiro, em 22 de novembro de 2019 - CARL DE SOUZA/AFP via Getty Images

Alguns partiram para a luta armada —um legítimo direito à resistência. Chico fazia frente à truculência militar com palavras e música. Seu "Roda-viva", espetáculo dirigido pelo grande, grande Zé Celso, foi atacado pelo Comando de Caça aos Comunistas, que espancou atores e destruiu cenários.

Meses depois, com o AI-5, quando foi interrogado e ameaçado no Dops, Chico partiu para o exílio na Itália, onde fez shows, gravou um disco com Ennio Morricone e compôs, entre outras, "Samba de Orly", com menções veladas à ditadura. Nas horas vagas, bebia grapa com os amigos Toquinho, Garrincha e Elza Soares.

Voltou em março de 1970 e um ano depois gravou o álbum "Construção", um molotov prensado em vinil. A canção-título, obra-prima de letra, melodia e arranjos, estes a cargo de Rogério Duprat, trata da tragédia de um trabalhador que "bebeu e soluçou como se fosse um náufrago". Em outras palavras, a tragédia do homem comum sufocado pelo arbítrio.

Para passar rasteira na censura, que vivia nos calcanhares de Chico, o advogado da gravadora teria dito: "Essa vocês podem proibir". O lance ousado funcionou: só para contrariar, a liberaram, sem os cortes que costumavam aplicar. Pois é, censores também faziam birra, mesmo que fosse contra seus interesses.

Não à toa, Bolsonaro odeia a arte e artistas como Chico (o que faz lembrar do refrão de Julinho da Adelaide, pseudônimo de Chico, "Você não gosta de mim, mas sua filha gosta", escrito "para" o ditador Ernesto Geisel, cuja filha tinha declarado de fato gostar do autor de "Apesar de você").

O último ex-presidente e covarde profissional, entusiasta da linha dura, da tortura e da censura, tentou atropelar a democracia e falhou pateticamente. Foi impedido de se candidatar. Quem sabe por mais tempo, quem sabe seja preso. Motivo de muita comemoração, com cachaça, conhaque, grapa, o que estiver à mão.

Uma celebração que se soma à tristeza com a morte do criador do Teatro Oficina. Mas, fonte inesgotável de alegria que era, Zé Celso iria, quem sabe, transformar o próprio velório em festa, ainda que "no peito a saudade cative". Daí que criei um coquetel para ele, usando ingredientes das garrafas na garagem de Chico. É a luta no luto, a orgia na saudade.


REI DA VELA

30 ml de cachaça

30 ml de conhaque

30 ml de licor de laranja

15 ml de suco de limão siciliano

5 ml de xarope de açúcar mascavo

Mexa os ingredientes e coe para um copo old-fashioned com gelo. Use uma casca de limão siciliano como guarnição

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