Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Demétrio Magnoli
Descrição de chapéu Eleições EUA 2020

Regra de ouro 'um eleitor, um voto' é estranha à democracia dos Estados Unidos

Adotar a fórmula clássica exigiria uma refundação tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Caos. Na noite fatídica, 3N, apurações congelaram à espera da contagem de votos enviados por correio em estados decisivos, enquanto Trump declarava vitória na guerra ainda incerta. República de bananas: o presidente contestava a apuração de milhões dessas cédulas, sugerindo a declaração de um vencedor antes da contagem de todos os votos.

Aritmética ocultista. Calculava-se, alta madrugada, as probabilidades de empate, dependentes da repartição dos delegados nos dissidentes Maine e em Nebraska, que fogem à regra do “vencedor leva tudo”. Mais uma vez, como há 20 anos, o sufrágio desviava-se rumo à tortuosa estrada vicinal dos tribunais. E, novamente, como em 2000 e 2016, erguia-se o espectro da cisão entre o voto popular e o Colégio Eleitoral.

Um eleitor, um voto. A regra de ouro das democracias é estranha à democracia americana. No seu lugar, inventou-se a regra do sufrágio estadual ponderado pelo sistema do Colégio Eleitoral. O republicano George W. Bush triunfou, em 2000, por 271 a 266, mesmo perdendo por meio milhão de votos. Trump venceu, em 2016, por 304 a 227, perdendo por quase três milhões de votos.

História. Os EUA nasceram, em 1776, como uma confederação das antigas colônias britânicas, transformando-se na atual federação com a Constituição de 1787. Os federalistas articularam um pacto entre as elites estaduais que assegurava a cada uma delas as autonomias de tributar, impor taxas alfandegárias e conservar o trabalho escravo. O artigo 2º da Constituição estabeleceu o Colégio Eleitoral, concedendo às assembleias estaduais a prerrogativa de escolher os delegados que elegem o presidente.

Nas décadas seguintes, universalizou-se a prática de selecionar os delegados pelo voto popular estadual e, em 1836, generalizou-se a regra do “vencedor leva tudo”.

Filosofia. A democracia é a vontade da maioria? Mais ou menos: democracia é a vontade majoritária temperada por instituições que protegem valores perenes e os direitos da minoria. O Colégio Eleitoral foi justificado como vacina contra o populismo, a tirania da maioria. O argumento corre paralelo ao outro, anacrônico e cada vez menos invocado, da preservação da autonomia estadual e das liberdades dos estados menos populosos. Há, porém, democracia quando o voto nacional majoritário pode ser ignorado seguidamente?

Reforma. Há duas décadas, desde o trauma da Flórida, crescem os clamores pela eliminação do Colégio Eleitoral. Um eleitor, um voto —a fórmula clássica exigiria uma refundação constitucional dos EUA tão radical quanto a experimentada na esteira da Guerra Civil, entre 1865 e 1869, com as três emendas que aboliram a escravatura, definiram a cidadania e proclamaram o direito universal de voto. Um caminho alternativo, proposto por diversos estados, é a reforma do próprio Colégio Eleitoral pelo estabelecimento da distribuição proporcional de delegados. A via reformista seria uma ruptura com a tradição, mas cabe na moldura da Constituição.

Reforma impossível. A substituição da regra do “vencedor leva tudo” pela proporcionalidade converteria o Colégio Eleitoral num espelho levemente distorcido do voto popular. As mudanças demográficas dos EUA impulsionadas pela expansão das grandes cidades e pelo crescimento relativo da minoria latina tendem a inclinar fortemente o voto popular para o lado dos democratas. Nesse cenário, é difícil imaginar a possibilidade de triunfos republicanos num hipotético Colégio Eleitoral proporcional. Os estados republicanos não renunciarão à tradição de quase dois séculos.

Guerra civil. Os EUA têm apenas dois partidos que contam. O voto popular direto ou um simulacro dele, pelo Colégio Eleitoral proporcional, significariam a virtual eliminação da perspectiva de poder de um deles. Partido único? A nação desceria o abismo de uma nova guerra civil antes disso.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.