Demétrio Magnoli

Sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Demétrio Magnoli

Tenda do Mago

Incorporação de 'terapêuticas alternativas' ao SUS impede diagnósticos de enfermidades reais

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Numa esquina perto de casa surgiu uma faixa de propaganda de uma certa Tenda do Mago, que vende "produtos esotéricos, místicos e religiosos". É um negócio inútil: já existe uma mais poderosa Tenda do Mago, de alcance nacional, ramificada em todas as capitais e em 3.024 municípios (54% do total). O nome oficial dela é PNPICs (Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares). Seus produtos esotéricos, místicos e religiosos são pagos com dinheiro do SUS –ou seja, teu, meu, nosso.

A vasta lista das PICs abrange homeopatia, termalismo social, antroposofia, dança circular, Reiki, Shantala, aromaterapia, constelação familiar, imposição de mãos e florais, entre outras crendices chiques. A Medicina Tradicional Chinesa, uma tradição milenar inventada por Mao Tse-tung 70 anos atrás, está dentro, é claro. João de Deus ficou fora, graças a deus.

Fachada do Ministério da Saúde, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília
Fachada do Ministério da Saúde, na Esplanada dos Ministérios, em Brasília - Geraldo Magela - 8.fev.19/Agência Senado

Quanto tempo demorará para um cartel qualquer de curandeiros retrucar com a acusação de que cometo o crime de atacar o SUS? Mas é o contrário: a proteção do SUS exige o direcionamento integral de recursos públicos escassos para a medicina baseada em ciência. Cada real gasto na Tenda do Mago é um real a menos destinado a médicos, enfermeiros, medicamentos, vacinas, luvas ou seringas.

Quantos reais, não se sabe: o Ministério da Saúde (MS) não divulga valores oficiais. O NHS britânico, referência em serviço de saúde pública, baniu a homeopatia após cuidadosa avaliação de sua (in)eficácia (https://shorturl.at/foKO2). Por aqui, ignorando as regras da própria PNPICs, o MS não faz acompanhamento periódico de resultados. A Tenda pratica o ocultismo em mais que um sentido.

Cloroquina? Ivermectina? O curandeirismo criminoso de Bolsonaro e cia provocou justa indignação durante a pandemia. Entretanto, a maioria das vozes que clamavam pelo respeito à ciência, usando a palavra com maiúsculas reverenciais, silencia diante da Tenda do Mago erguida no SUS –e, inclusive, em diversos casos, exprime ativa aprovação.

"Ciência", aqui –como, aliás, "democracia" no caso dos que celebram Cuba ou Venezuela– funciona exclusivamente como arma retórica no jogo político. De fato, repetindo os argumentos difundidos pelos bolsonaristas, os defensores das PICs invocam supostas curas anedóticas obtidas pelas "terapêuticas alternativas" ou alegam que, no fim das contas, elas "não fazem mal a ninguém". Os produtos esotéricos elencados pelo SUS são a cloroquina deles.

Mas, efetivamente, a incorporação das tais "terapêuticas alternativas" ao SUS faz mal –e não apenas aos cofres públicos. De um lado, o recurso a elas retarda ou impede diagnósticos de enfermidades reais. De outro, sua legitimação oficial confere um ilusório selo de eficácia aos comerciantes de ilusões. Nesse passo, deseduca-se a sociedade pela diluição da fronteira entre medicina e curandeirismo: afinal, se o SUS paga o Reiki, por que não experimentar a cura milagrosa prometida pela cloroquina?

A PNPICs nasceu no primeiro mandato de Lula e engordou com o tempo, no ritmo de um sistema político que sempre premia os lobbies. Atualmente, cozinha-se a inclusão de mais uma dezena de PICs na Tenda em permanente ampliação. O atentado perene contra a saúde pública, cometido por governos de todos os matizes ideológicos, realiza-se sob o pano de fundo da politização do Conselho Nacional de Saúde, que abandonou há muito o estatuto de órgão técnico.

As varetas que sustentam a PNPICs não são leis, mas meras portarias. A Portaria 971, de 2006, criou o monstrengo e a 849, de 2017, alargou seus tentáculos pela introdução de 14 novas "terapêuticas alternativas". Isso significa que a ministra da Saúde, Nísia Trindade, cantada em prosa e verso como uma cientista num mar de políticos, tem a prerrogativa de derrubar a Tenda do Mago com uma simples canetada. Por que não o faz?

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.