Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

História de Pecola, que sofreu com a naturalização da barbárie, não foi em vão

Personagem de Toni Morrison é uma menina preta que, para escapar do racismo, cria um delírio triste de que tem olhos azuis

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Pecola Breedlove é o nome da personagem central do romance de estreia da gigantesca Toni Morrison, “O Olho Mais Azul”. Uma menina preta, violentada de várias formas e por várias pessoas, que, para escapar do racismo, cria um delírio triste de que tem os olhos azuis para se encaixar no padrão de beleza da atriz mirim Shirley Temple. Ignorada, sofreu com a naturalização da barbárie. É o meu livro favorito.

Morrison, com seu brilhantismo, toca nas feridas causadas pelo racismo, incluindo o colorismo. Esse livro é tão fundamental para mim que, em 2019, quando Morrison autorizou que eu escrevesse o prefácio de uma reedição, chorei de emoção por dias. Foi um pouco antes da Nobel de literatura morrer e sinto como se ela tivesse me abençoado. Isso porque, em muitos momentos da minha vida, eu também fui Pecola.

Ilustração de uma mulher negra, vestindo brincos de argola e blusa laranja, lendo um livro. Há folhagens no fundo da imagem
Linoca Souza/Folhapress

Em um dos trechos, Morrison descreve uma das diversas agressões sofridas por Pecola por seus colegas de escola: “Preta retinta. Preta retinta. Seu pai dorme pelado”.

“Eles haviam improvisado um verso composto de dois insultos sobre questões acerca das quais a vítima não exercia controle: a cor de sua pele e especulações sobre os hábitos de sono de um adulto, loucamente encaixados em sua incoerência. O fato de também eles serem negros e de seus respectivos pais terem hábitos igualmente descontraídos era irrelevante. Era o desprezo que sentiam pela própria negritude que fez irromper o primeiro insulto. Pareciam ter tomado toda a sua ignorância calmamente cultivada, o ódio por si mesmos primorosamente aprendido, sua desesperança elaboradamente concebida, e absorvido tudo isso num cone causticante de desprezo que ardera durante anos nos meandros de suas mentes, esfriara e agora jorrava por lábios afrontosos, consumindo tudo o que estivesse em seu caminho. Dançavam um balé macabro em torno da vítima, a quem estavam dispostos a sacrificar, pelo próprio bem deles, no fosso das chamas.”

Ao assistir às agressões, as outras crianças disseram: “Olhávamos, com medo de que eles nos notassem e dirigissem sua energia para nós”. A omissão perante as agressões para não ser alvo delas. Então que Pecola sofresse como escudo para que elas pudessem ser elas mesmas.

Comparando com a nossa sociedade, quantas vezes nos acovardamos na guerra justa para que o ódio não seja direcionado a nós? Isso é uma ilusão, pois, após “o fosso das chamas”, se buscarão novas vítimas para o sacrifício. Muitas vezes, adere-se à agressividade também para se sentir parte.

Maureen Peal, a garota de pele caramelo que todos amavam, era a única a não sofrer com a implicância dos meninos. Ela finge interesse por Pecola, até que, na primeira discordância, diz a ela e suas amigas Frieda e Claudia: “Eu sou bonita! Vocês são feias! Pretas e feias, pretas retintas. Eu sou bonita!”.

As amigas reagem, mas Pecola permanece inerte. “O sofrimento de Pecola me contrariou. Tive vontade de abri-la toda, afiar-lhe as garras, enfiar um pau naquela espinha arqueada e murcha, forçá-la a se pôr ereta e cuspir o sofrimento na rua.” Pecola não reagiu como Claudia queria. E seguiu sofrendo com a banalidade do mal.

Porém, a omissão é cumplicidade, como mostrará Morrison, quando Pecola tem o desfecho mais triste possível.

“Todos nós —todos os que a conheceram— nos sentíamos tão higiênicos depois de nos limparmos nela. Éramos tão bonitos quando montávamos na sua feiura. A simplicidade dela nos condecorava, sua
culpa nos santificava, sua dor nos fazia reluzir de saúde, seu acanhamento nos fazia pensar que tínhamos senso de humor. Sua dificuldade de expressão nos fazia acreditar que éramos eloquentes. Sua pobreza nos mantinha generosos. Até seus devaneios usamos para silenciar nossos próprios pesadelos. Nela, afiamos o nosso ego, com a fragilidade dela reforçamos nosso caráter e bocejávamos na fantasia de nossa força. E era fantasia, pois não éramos fortes, apenas agressivos; não éramos livres, meramente autorizados; não éramos compassivos, éramos polidos; não bons, mas bem comportados. Cortejávamos a morte a fim de nos chamarmos de corajosos e escondíamos da vida como ladrões. Substituíamos intelecto por boa gramática; mudávamos os hábitos para simular maturidade; rearranjávamos mentiras e as chamávamos de verdade.”

Morrison nos chama a atenção para questões profundas, mas eu gostaria de dizer a Pecola que sua história não foi em vão. Muitas tombaram, mas muitas, por ela, arquearam suas espinhas, afiaram suas garras, não aceitaram uma pretensa unidade pavimentada no silêncio, cobraram postura das “Maureen Peals”, furaram os olhos azuis e reluziram em suas negritudes cor de noite.

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