Djamila Ribeiro

Mestre em filosofia política pela Unifesp e coordenadora da coleção de livros Feminismos Plurais.

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Djamila Ribeiro

Busca por meus momentos de silêncio é muitas vezes luta inglória

Individualismo exacerbado faz as pessoas ficarem cada vez mais barulhentas

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Sou uma pessoa que ama ficar em silêncio. Como medito todos os dias, aprendi a silenciar os pensamentos. No candomblé, há alguns momentos, parte de alguns rituais, em que precisamos ficar em silêncio dentro de um quarto, oportunidade para lidar com nossos desafios. Como faço muitos eventos públicos, gosto de ficar quieta, contemplar alguma paisagem, me esconder em algum lugar com muita natureza. É uma necessidade para mim.

Como escritora, preciso do silêncio para pensar, elaborar um texto, escrever um livro. Durante muito tempo o silêncio foi um sonho distante. Comecei a trabalhar cedo, quando mãe de um bebê; foram raros os momentos em que consegui ter tempo de qualidade. Lembro que concluí a minha graduação em quatro anos e meio e defendi o mestrado em dois anos e meio. Uma vez me perguntaram o porquê disso. Minha resposta: porque sou mãe.

Foram muitas as vezes em que precisei faltar às aulas porque minha filha havia ficado doente ou porque deixei o arroz queimar porque havia me concentrado na escrita da dissertação. De onde vim, trancar-se num quarto para escrever era algo completamente distante.

Minha mãe se trancava no banheiro por mais de uma hora e acendia um cigarro. Com quatro filhos e uma casa para cuidar todos os dias, era a forma que encontrava refúgio no silêncio. Como cresci em Santos, aprendi a contemplar o silêncio andando pela praia, sobretudo em dias nublados ou de chuva, sem raios, claro. A praia fica vazia e a gente pode fugir do barulho insuportável das caixinhas de som, atualmente cada pessoa leva a sua e o mar, a grande estrela do lugar, tem seu lindo som abafado pelo individualismo, por pessoas que não respeitam o senso de coletivo.

Hoje consigo ficar mais em silêncio, mas ainda é um desafio quando se tem vizinhos que acham que moram sozinhos na rua e colocam som alto durante a noite toda. Ou quando o barulho das britadeiras de alguma obra atormenta os mais profundos dos pensamentos. Se estou em uma festa, claro que o som não me incomoda, sei que haverá barulho, o problema é quando as pessoas não respeitam o horário do silêncio e os ambientes coletivos.

Quando estava na graduação, pegava um ônibus no terminal Armênia em São Paulo até o bairro dos Pimentas, em Guarulhos, onde ficava o campus de humanas. Foram muitas as vezes em que aproveitei o longo tempo de viagem para ler algum texto ou livro. Foram muitas as vezes também em que me irritei com pessoas que colocavam som alto, julgando que todo mundo tinha obrigação de ouvir. Lembro quando uma senhora colocou no último volume um louvor de igreja enquanto eu tentava entender o conceito de liberdade ontológica em "O Ser e o Nada", de Sartre.

Coloquei meus fones de ouvido —quando as pessoas não respeitam o coletivo, a saída acaba sendo individual, porém sem sucesso. Não houve uma viva alma para reclamar, então coube a mim esse papel. A senhora ficou brava comigo e respondeu: "Se fosse funk você não reclamaria!". Ao que respondi: "Teria reclamado do mesmo jeito, a senhora agora conhece meu gosto musical?". Contrariada, ela baixou o volume, não sem reclamar com outros passageiros.

Na ilustração, de fundo verde claro, uma mulher está sentada em uma poltrona laranja, enquanto segura uma xícara branca. A mulher é negra, tem um cabelo preso em coque e usa uma blusa branca. À sua frente está uma mesa com quatro livros sobre ela, acima da mesa, pendurado no teto, um cachepot suspenso, com um vaso de plantas.
Ilustração de Aline Bispo para coluna de Djamila Ribeiro de 16.mar.23 - Aline Bispo

Por conta de detestar barulho, peguei fama de chata num prédio em que morei por anos. Meu vizinho de cima era DJ e colocava um som enlouquecedor todos os dias. Muitos vizinhos não gostavam, mas tinham medo de reclamar, pois o vizinho já havia se mostrado agressivo algumas vezes. Lembro-me de chorar de irritação quando precisava entregar um texto e não conseguia me concentrar por conta das batidas fortes da música. Eu trabalho muito em casa e era insuportável.

Até que passei a reclamar todos os dias para a síndica. Como ela tinha medo dele, passei eu mesma a interfonar no apartamento dele. Até que um dia a avó me disse: "Ele é DJ, precisa praticar". Eu disse imediatamente: "Eu sou escritora, mas não fico colocando meus textos embaixo da porta de vocês. Ou ele faz um isolamento pra não passar ruídos ou não vai dar certo a convivência". Passado algum tempo as coisas melhoraram, mas fiquei com a fama de vizinha chata e infeliz, simplesmente por reivindicar um direito. Eu respeitava quem vivia em um ambiente com outras pessoas, logo seria errado impor a minha vontade sobre os outros.

Sigo buscando esses momentos de silêncio a cada dia, mesmo sendo uma luta inglória, muitas vezes. O individualismo exacerbado faz com que as pessoas fiquem cada vez mais barulhentas e distraídas de si mesmas.

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