Drauzio Varella

Médico cancerologista, autor de “Estação Carandiru”.

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Drauzio Varella

As lições de vida que recebi do professor Erney Plessmann

Em 1962, com ele, pela primeira vez entendi em que país eu vivia

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Há professores aos quais devemos muito. Entre dezenas de outros com quem convivemos nas escolas, eles se destacaram por ampliar nossos horizontes, dar lições de vida e apontar caminhos que não teríamos encontrado sem a influência intelectual e o exemplo que nos deram.

Para mim, o professor Erney Plessmann de Camargo foi um destes.

Em 1962, quando entrei na faculdade, ele era o assistente mais jovem do Departamento de Parasitologia da USP. Eram tempos de efervescência cultural e agitação política. Analfabetismo, miséria, mortalidade infantil e desnutrição estavam por toda parte, em alguns estados a expectativa de vida mal passava dos 40 anos.

As endemias rurais constituíam o principal agravo de saúde pública. Tínhamos anualmente cerca de 120 mil casos novos de doença de Chagas. Ao redor de 1 milhão de brasileiros conviviam com o Trypanossoma causador, protozoário que Luiz Hildebrando e Erney pesquisavam. Antes concentrada nas "lagoas de coceira" do Nordeste, a esquistossomose chegava à periferia de São Paulo, trazendo com ela cirrose hepática e mortes precoces. A malária fazia parte do cotidiano amazonense.

Contraditoriamente, a faculdade nos preparava para o exercício de uma profissão liberal. O acesso dos mais pobres à assistência médica dependia da caridade pública.

Jeca Tatu, personagem de Monteiro Lobato - Reprodução

A cadeira de parasitologia era um oásis nessa falta de consciência social. O professor Samuel Pessôa, chefe do departamento, soube reunir pesquisadores interessados em levar o conhecimento científico para as regiões mais remotas: Luiz Rey, Luiz Hildebrando Pereira da Silva, Leônidas e Maria Deane e o Erney, entre outros.

A parasitologia era ensinada no segundo ano do curso. As discussões acadêmicas, as pesquisas e o real interesse daquele grupo em preparar estudantes interessados em saúde pública e no pensamento científico exerceram grande influência em minha formação.

Sob um céu cinza de entardecer, cai a última pétala viva e rosa de uma árvore já retorcida é morta.
Ilustração para coluna de Drauzio Varella de 8 de março de 2023 - Libero

Todos aos anos, o departamento organizava a Bandeira Científica, com o objetivo de levar os segundanistas para um trabalho de campo em regiões remotas do Brasil. Na minha turma, o coordenador da expedição foi o Erney.

Antes da viagem, feita num ônibus velho cedido pelo governo do Estado, ele reuniu o grupo para explicar que iríamos para os confins da fronteira da Bahia com Sergipe, junto à cachoeira de Paulo Afonso, em que estava instalada a Companhia Hidrelétrica do São Francisco (Chesf), responsável pela distribuição de energia elétrica para os estados do Nordeste.

A cachoeira de Paulo Afono (BA), em época de seca - Lula Marques - 18.jul.12/Folhapress

Realizaríamos exames de fezes nas crianças residentes em duas áreas separadas por uma cerca: de um lado, as que viviam nas casas reservadas aos funcionários da Chesf; do outro, as que moravam nas habitações precárias da cidadezinha ao lado, sem nem uma rua calçada sequer.

A intenção era mostrar que o termo "doenças tropicais" não passava de preconceito dos países mais ricos. Elas não eram um tributo a pagar para viver junto à linha do Equador, mas doenças do subdesenvolvimento.

Se me lembro, a prevalência de verminoses no lado da cerca em que moravam as crianças protegidas pela Chesf foi de cerca de 10%, enquanto nas que moravam na precariedade da vizinhança chegou perto de 100%.

O aspecto doentio das mulheres, homens e crianças que viviam nos casebres de pau a pique do sertão de Minas e da Bahia foi um divisor de águas: pela primeira vez entendi em que país eu vivia.

Na viagem, ficamos amigos. Conversávamos horas e horas. Falávamos de saúde pública, ciência, cinema, artes plásticas e literatura, tudo o que ele dizia me interessava.

Em 1964, Erney e outros professores foram acusados de comunistas e demitidos da universidade, uma chaga na história da USP. Convidado pela Universidade de Winsconsin, ele e a família passaram cinco anos nos Estados Unidos.

Quando o Brasil começou a voltar à civilização, ele foi contratado pela Unifesp. Mais tarde seria presidente do CNPq e do Instituto Butantan, professor emérito da USP e presidente da Fundação Conrado Wessel, entre outros cargos reservados aos cientistas mais brilhantes.

Tive o privilégio de conviver com esse intelectual, com quem aprendi tanto. Nos últimos anos, em longas conversas em mesa de bar.

Na última sexta-feira recebi a notícia do falecimento do amigo inesquecível.

Perder pessoas queridas é a provação mais cruel que o envelhecimento nos impõe

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