Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

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Elio Gaspari

De Joaquim Breves@agro para Lula

Nas minhas terras, lembre-se dos negros

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Estimado presidente,

Saindo da ópera, encontrei D. Pedro 2º e ele contou-me que o senhor está nas minhas terras da restinga da Marambaia e lá pretende passar a noite do fim de ano. O monarca lhe quer bem, mas insiste em provar que os republicanos são uns doidos. "Só malucos passariam a festa num dos seus viveiros de negros novos, e este não é o primeiro", disse-me o Imperador.

Presidente Luiz Inácio Lula da Silva passará os últimos dias do ano na base naval da Restinga de Marambaia, no Rio de Janeiro - Adriano Machado/Reuters

Releve a má vontade de D. Pedro com a República, mas ele tem alguma razão, e escrevo-lhe para minorar o desconforto. (Ele não perdia a leitura dos jornais durante a pandemia, mostrando a todos a conduta do seu antecessor.)

Sou um patriota, no dia 7 de setembro de 1822 eu estava na guarda de D. Pedro 1º na cena do Grito do Ipiranga. Comprei toda a restinga da Marambaia em 1847. Eu e meu irmão tínhamos fazendas de café e milhares de escravos. Usávamos o trapiche da Marambaia para receber os africanos novos.

De 1837 a 1852, desembarquei mais de 4.000 negros na Marambaia, e continuamos a fazê-lo depois de 1850, quando um governo poltrão cedeu aos ingleses e proibiu a importação de africanos. Como a fiscalização atrapalhava meu negócio, em fevereiro de 52, adverti: "Se isto continua, a vida e fortuna de numerosos cidadãos, assim como a paz e a tranquilidade do Império, correm iminente perigo".

Anos depois, meu irmão José também avisou:

"A continuar a pôr em muito risco nossa segurança, abalará nossas fortunas, e pode acarretar para o país funestas consequências."

Éramos parte de uma elite próspera e nobre. Das minhas terras saíam 1,5% das nossas exportações de café. O sábio suíço Louis Agassiz maravilhou-se numa de nossas fazendas. Minha neta casou-se com o filho do Montholon, o general que acompanhou o Imperador Napoleão para o inferno da ilha de Santa Helena. Quando não nos casávamos na nobreza, casávamos com parentes. Eu era tio da minha mulher, irmão da minha sogra e cunhado do meu sogro.

Nossas profecias realizaram-se. Os filantropos do abolicionismo prevaleceram, a família imperial foi desterrada e a fortuna dos Breves sangrou. No século 20, o Vitor, um de nossos descendentes, era chefe político em Mangaratiba, mas vivia de um bananal e uma usina térmica. Produzia uma ótima bananada, a Tita. Tivemos parentes ilustres, mas viramos pó.

Usufrua a beleza da Marambaia e esqueça os Breves, mas se lembre que não passa pela cabeça de um presidente norte-americano hospedar-se numa propriedade que foi viveiro de africanos escravizados. Assim somos nós. Como lembrou o doutor Pedro Malan (um remoto Breves), "no Brasil até o passado é incerto".

Peço-lhe a graça de lembrar-se desse tempo, conversando com alguns quilombolas que vivem na região. Peço-lhe isto porque daqui de onde estou incomoda-me que se faça de conta que a Marambaia é um paraíso, fingindo-se que meu viveiro de negros escravizados é parte da história de um outro mundo. Perto do viveiro, em Angra dos Reis, está o quilombo do Bracuí, que leva o nome de uma fazenda para onde meu irmão levava negros desembarcados. Ouça sua gente.

Do seu criado,

Joaquim José de Souza Breves

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