Fernanda Mena

Jornalista, foi editora da Ilustrada. É mestre em sociologia e direitos humanos pela London School of Economics e doutora em Relações Internacionais.

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Discurso fácil sobre drogas legitima projeto controverso

Proposta contraria evidências científicas sobre o consumo de entorpecentes

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Um projeto de lei que, vindo da Câmara, tramita há seis anos no Senado ganhou, de repente, ares de urgência.

Trata-se do PLC 37/2013, que cria o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas (Sisnad) e que reúne propostas tão populares entre leigos quanto controversas entre especialistas.

Elas vão na contramão das políticas de redução de danos —que não impõem a abstinência como condição para o tratamento—, aplicadas hoje em boa parte do mundo desenvolvido.

 
corredor do hotel
Hotel na Freguesia do Ó para usuários de crack que faziam parte do programa de Braços Abertos, da Prefeitura de São Paulo - Marcus Leoni - 9.ago.16/Folhapress

“De fato, não há tempo a perder, pois a questão das drogas atinge proporções epidêmicas de proporções crescentes [sic], e medidas pertinentes devem ser tomadas o mais rapidamente possível”, justifica o senador Styvenson Valentim (Pode-RN) no parecer entregue à Comissão de Assuntos Econômicos.

A comissão ameaçou aprovar a jato o parecer, no intervalo de poucas horas, no final de abril, mas foi vencida por um pedido de vistas coletivo. Voltam ao tema nesta semana.

 

Para dar celeridade à matéria, o senador estreante, ex-capitão da PM potiguar, sugere um trâmite pouco ortodoxo: ignorar os substitutivos já aprovados na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) e na Comissão de Educação (CE) durante a legislatura anterior para evitar que o projeto, modificado no Senado, retorne à Câmara.

O corre-corre e a rejeição de ajustes propostos na Casa provocaram o protesto de mais de 50 entidades, associações e centros de estudos ligados à saúde e ao direito, além de movimentos sociais.

Eles assinaram uma nota pública em que pedem a retomada do diálogo democrático e das audiências públicas sobre o projeto nesta nova legislatura. Além disso, pedem a garantia de trâmite do projeto pela Comissão de Direitos Humanos, que corre o risco de ficar de fora do debate no qual sua participação era prevista.

Isso porque há propostas no PLC 37 original que lhe competem. O projeto prevê, por exemplo, a internação involuntária de usuários, a falta de critérios objetivos para diferenciar usuários de traficantes e a incorporação ao sistema das chamadas comunidades terapêuticas, que passariam a dispor de verbas públicas e doações privadas dedutíveis do Imposto de Renda.

Comunidades terapêuticas são instituições de cunho religioso, em geral, que oferecem internação para dependentes químicos.

Relatório de 2017 da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas encontrou violações de direitos humanos em todas as 28 unidades visitadas, entre punições físicas, retenção de documentos e trabalhos forçados, além da falta de equipes mínimas essenciais ao tratamento. Trata-se de uma amostra que não representa o universo de mais de mil dessas instituições, mas que pinta um quadro dantesco.

Por que tanta pressa, então?

Coincidência ou não, o PLC 37 é de autoria do atual ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB-RS), um apaixonado defensor de medidas mais rígidas no campo das políticas de drogas, que ganhou superpoderes no governo Bolsonaro ao acumular as pastas da Cultura, Esporte e Desenvolvimento Social.

Suas ideias neste campo estão longe de serem consensuais, em especial no meio acadêmico e científico, e costumam ser legitimadas a partir da ideia de que viveríamos uma “epidemia”.

“Eu faço política baseada em evidências científicas", declarou na última segunda (6) em entrevista ao programa Roda Viva.

Não é o que sugerem os dados da pesquisa sobre uso de drogas no país que a Secretaria Nacional de Políticas de Drogas, do Ministério da Justiça, escondeu durante quase um ano e meio, e que custou aos cofres públicos R$ 7 milhões.

Realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), ligada ao Ministério da Saúde, a pesquisa aponta que 0,9% da população usou crack alguma vez na vida, 0,3% o fez no último ano e apenas 0,1% nos últimos 30 dias. Em 2005, os dados eram, respectivamente, 0,7%, 0,1% e o mesmo 0,1%.

Para cocaína, 3,1% dos brasileiros a usaram alguma vez na vida, 0,9% no último ano e 0,3% no último mês.

Ainda que os dados sejam preocupantes, eles não sugerem um quadro epidêmico.

Além disso, a prevalência de uso de crack é menor e a de cocaína é semelhante àquele da maioria das droga lícitas usadas de maneira recreativa e que podem causar dependência e prejuízos à saúde, mas que não parecem ser objeto de preocupação das autoridades.

A pesquisa aponta que 3,9% dos brasileiros já usaram medicamentos benzodiazepínecos (soníferos e hipnóticos) ao longo da vida, 1,4% no último ano e 0,4% nos últimos 30 dias. Para os opiáceos (analgésicos derivados do ópio que vem causando, aí sim, uma epidemia de overdoses nos EUA), as prevalências são de 2,9%, 1,4% e 0,6%, respectivamente.

Na atual guerra de narrativas que vive o país, Terra fez questão de reiterar a sua: contra as evidências científicas, seu discurso no Roda Viva era de que vivemos uma epidemia de drogas.

Se seu PLC 37 vencer os trâmites previstos, atropelando propostas aprovadas na legislatura anterior a partir de um argumento que não para em pé, é mais um sinal de que a ideologia está vencendo o bom senso e a razão.

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