Fernanda Torres

Atriz e roteirista, autora de “Fim” e “A Glória e Seu Cortejo de Horrores”.

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Fernanda Torres
Descrição de chapéu Amazônia

'Arrabalde' deveria ser leitura obrigatória no Congresso, em ministérios e nas escolas

Livro de João Moreira Salles mostra a cegueira do Brasil com a Amazônia

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Leio com atraso "Arrabalde", de João Moreira Salles, livro extraordinário sobre a cegueira de um país que sempre viu a floresta como sinônimo de paralisia e atraso.

Sem seguir uma linha do tempo, "Arrabalde" é guiado pela persistência do autor em mapear as causas de um desvario que insiste em pôr abaixo uma das maiores riqueza naturais do planeta, trocando biodiversidade por pasto careca.

Desde que o explorador espanhol Francisco de Orellana desceu o rio das Amazonas, todas as tentativas de domar a selva se revelaram equivocadas. E para cada um dos incontáveis equívocos, bem como para as raras iniciativas acertadas, "Arrabalde" oferece um personagem para corporificar a história, dando voz a antropólogos e madeireiros, indígenas e fazendeiros, imigrantes e ribeirinhos, cientistas e caubóis.

É um livro bipolar. Alguns capítulos, de tão desoladores, exigem do leitor doses cavalares de Rivotril para vencê-los. O que aborda o risco de contaminação viral por patógenos, até então bem guardados nos fundões dos igarapés, é de arrepiar. Outros trazem esperança ao vislumbrar a possibilidade de recomposição da cobertura verde e da exploração racional da floresta.

A perspectiva de futuro mais aterradora já está em curso, com a Amazônia entregue às facções criminosas, ao garimpo ilegal e ao contrabando de madeira. Caso persista, deixaremos de herança a violência desenfreada, a morte lenta por mercúrio, a falta de chuva e o deserto das queimadas.

E mesmo o agronegócio, se não tomarmos vergonha na cara, periga enfrentar o revés sofrido pelos barões da borracha. Por 30 anos, entre o final do século 19 e o início do 20, a seiva viscosa dos seringais forneceu o látex empregado na recém-implantada indústria automotiva do primeiro mundo. Mansões e teatros da belle époque floresceram nas ruas de Belém e Manaus.

O contrabando de sementes brasileiras para a Indonésia nos roubaria a primazia. A ausência dos fungos nativos da Amazônia permitiu ao país asiático o plantio em série das seringueiras e o domínio do mercado, levando à falência a produção nacional.

Sobre uma foto de fundo que mostra uma vista aérea do rio Amazonas e afluentes, há uma colagem de fotos e desenhos de crianças da Amazônia, salpicando esse fundo aqui e ali : indígenas, ribeirinhos, quilombolas.
Ilustração de Marta Mello para coluna de Fernanda Torres de 21 de agosto de 2024 - Marta Mello/Folhapress

A soja e a carne são a borracha da vez. Nada garante que o Brasil vá ser um exportador vitalício desses produtos. O aquecimento global tem diminuído a incidência de chuvas no Norte, no Nordeste e no Centro-Oeste e aumentado as áreas cultiváveis das estepes de Putin. A proximidade da China pode transformar a Rússia na nossa nova Indonésia.

"Arrabalde" prova que nada é estável na natureza. Seria preciso ciência e planejamento para preservar o que Deus nos deu de bandeja, mas não há. A ocupação da Amazônia se deu pelas estradas, movida pelo improviso de homens-saúva, tendo a miséria como força motriz do desenvolvimento.

Num livro tecido como cipoal, vai-se do fazendeiro que só preserva o que sobrou de selva porque é obrigado por lei ao prefeito que se convenceu de que depende da mata; do fracassado Projeto Jari —cujo maior legado foi ter mantido de pé 80% da cobertura vegetal de sua Bélgica particular— ao imigrante japonês que aprendeu com um ribeirinho a cultivar na floresta sem derrubá-la.

A ciência dos amazônidas se encontra com a USP no capítulo conduzido por Eduardo Neves. O antropólogo faz parte da corrente que se contrapôs à ideia de que a Amazônia pré-colombiana era ocupada por grupos dispersos de primitivos caçadores-coletores. A floresta, afirma o estudioso, é a pirâmide dos cacicados, erguida por uma civilização orgânica, que selecionou espécies e cultivou a "terra preta dos índios".

E é só depois de sublinhar, através de Neves, o patrimônio deixado pelos povos originários que Salles chega a Ester Ymeriki Kaxuyana, da terra ancestral dos kaxuyanas, à beira do rio Kaxuru, no norte do Pará.

A avó de Ester teve um filho com o marido indígena e um menino e uma menina com um homem negro, escravizado fugido dos seringais. A menina, mais tarde, daria à luz a narradora.

O relato de Ester passa por aldeias, quilombos e congregações missionárias; engloba miscigenação, exploração, contágio, extermínio e catequese; descreve o preconceito, a resistência e a retomada de um território. Coração do livro, a epopeia kaxuyana é um divisor de águas entre o desenvolvimentismo colonial-milico-transamazônico-agropecuarista e a consciência do terceiro milênio de que a Amazônia pode acabar.

Com a persistência e a minúcia do bom documentarista que é, Salles foge do maniqueísmo ao dar escuta aos que nasceram na região e aos que foram impelidos a ela, traçando cenários futuros, muitos deles apavorantes, enquanto busca soluções possíveis. É de tirar o chapéu.

"Arrabalde" deveria ser leitura obrigatória na Câmara e no Senado, nos palácios e nas assembleias, nas prefeituras e nos ministérios, em escolas públicas e privadas.

A cronista terá que se ausentar porque a atriz tem de lançar o filme "Ainda Estou Aqui".

Volto em breve.

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