Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso

Despachando no guichê da ayahuasca

Se o chá tem tanto potencial terapêutico e é tão arraigado na cultura dos povos originários, como pode ainda ser tão pouco explorado?

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Tomei ayahuasca pela primeira vez quando passava por uma crise no casamento e procurava por algumas respostas. Foi numa cerimônia xamânica, a céu aberto, em torno de uma fogueira. Senti medo, tomei metade da dose recomendada e nada aconteceu. Ou melhor, aconteceu: fiquei presa ao meu ego julgando tudo.

Na segunda vez, cheguei com mais sede. E descobri que uma das máximas sobre a ayahuasca é verdade: você pode até levar o seu propósito, mentalizar aquilo que deseja saber, mas quem decide o que deve ser curado é o cipó —um dos ingredientes da bebida, junto com a chacrona.

E o cipó não estava nem aí para as minhas angústias conjugais. Alguns meses antes, minha avó havia falecido em outra cidade. Embora fôssemos muito próximas, não pude ir ao enterro. Precisei seguir apertando os parafusos da linha de montagem da minha vida, sem poder me dar ao luxo de chorar o bastante, sob risco de enferrujar o meu emprego.

Cipó de ayahuasca encontrado na  floresta  preservada da área  do Cristalino Lodge, em Alta Floresta, Mato Grosso
Cipó de ayahuasca encontrado na floresta preservada da área do Cristalino Lodge, em Alta Floresta, Mato Grosso - Eduardo Knapp - 10.dez.2022/Folhapress

Foi o chá bater que a minha vó apareceu. Como num sonho, só que muito mais palpável, com calor e cheiro. Eu sei por que a abracei. Disse a ela tudo o que não pude dizer antes que morresse. E chorei com o nariz enfiado nos seus cabelos. Alguns dirão que foi uma alucinação. Eu não sei que palavra empregar, e que importância tem?

Fiz o luto que precisava fazer. Alguns meses depois, outra beberagem, em outro tipo de cerimônia. Eu ainda carregava a mesma crise conjugal, mas o cipó protocolou de novo o assunto e jogou num escaninho lá longe, atentando-se a resolver as minhas questões de infância.

Não só da minha infância. Nessa sessão também percebi que vivia buscando grandes epifanias e esquecia de enxergar o óbvio —às vezes, o óbvio, de tão óbvio, é mesmo imperceptível.

A planta apontou que eu não andava flexionando os joelhos para falar olhando nos olhos da minha filha. E esse gesto, de trinta centímetros, acabou por mudar a nossa relação. A última sessão dessa época foi a mais frustrante. E a mais bonita.

Fui até uma aldeia Yawanawa, no Acre, para fazer pesquisa para o meu último livro, o romance Suíte Tóquio. Como estava tomando antidepressivo e parece que esse tipo de medicamento pode, com a ayahuasca, provocar excesso de serotonina no cérebro (sim, até o que parece o paraíso pode ser um inferno), resolvi não tomar a bebida.

Participei das cantorias, tendo como companhia apenas a minha rotineira consciência. O cipó acabou nunca despachando os assuntos relativos ao meu casamento. Tive que resolver de outro jeito. E deu certo. Ainda assim, as minhas experiências com a dimetiltriptamina valeram cada gole.

Sei que a molécula de nome complicado não é recomendada para todos (pode, por exemplo, ser danosa para pessoas com esquizofrenia), mas, comigo, confirmou a outra máxima: vale por meses de terapia.

O que não elimina as sessões de terapia, que podem até ajudar a expandir as percepções trazidas pelo chá, que já vem sendo empregado para tratar depressão, alcoolismo e outros quadros —isso sem falar em todo uso ritualístico e religioso, um capítulo à parte.

Agora a pergunta que não quer calar: se o chá tem tanto potencial terapêutico e é tão arraigado na cultura dos povos originários do nosso país, como pode ainda ser tão pouco explorado?

Um pesquisador da área de psicoativos, com quem conversei, relatou duas questões: a falta de incentivo a pesquisa científica no país e o preconceito de muitos brasileiros com "coisa de índio". É aquele velha ignorância dando as caras em mais um inusitado guichê.

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