Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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Giovana Madalosso
Descrição de chapéu WhatsApp

Me enterre com meus áudios

A humanidade já pode até ser dividida em dois grupos: os que gostam ou não de áudios

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Quer ver as pessoas discordarem em um assunto? Pergunte quem gosta de mensagens de áudio. Eu experimentei fazer isso, em uma festa de amigos, e a conversa foi tão longe que, se fosse um arquivo de áudio, num certo momento eu teria apertado 2x para acabar mais rápido.

Sim, sou daquelas que aceleram o negócio. Que já desejam que a evolução da espécie crave um 2x na testa da próxima geração de humanos para que eu nunca mais precise ouvir um parente contar sobre sua operação de vesícula em 1x.

O mundo não é o mesmo depois dos áudios. Ouso dizer que estamos até desenvolvendo novas habilidades narrativas. Foi-se a conversa telefônica, interrompida pelas perguntas do interlocutor, e entrou o monólogo, transformando a todos em dramaturgos instantâneos da própria existência, pouquíssimos, infelizmente, dotados do talento de Shakespeare.

Mulher segura sobre a boca um celular com o logotipo do WhatsApp
O mundo não é o mesmo depois dos áudios - Unsplash

Mas estamos treinando. E a extensão da mensagem revela muito sobre a personalidade de cada um. Há quem se sinta tão mal em mandar áudio que acaba alongando o arquivo, de tanto se desculpar por estar mandando áudio. Na outra ponta, está o sujeito que você nunca viu, cujo nome não passa de um número de telefone e, mesmo assim, se sente à vontade para despejar um oceano de ondas sonoras na sua orelha. Reprovo mas também admiro: como eu queria ter uma autoestima lubrificada desse jeito.

Com os amigos íntimos, a troca de mensagens parece sessão de terapia. Você dá aquela desabafada e o outro fica só escutando, nas horas mais inusitadas, como se um divã surgisse ao lado dele na academia ou no banheiro.

A humanidade já pode até ser dividida em dois grupos: os que gostam ou não de áudios. Entre os que gostam, aqueles que curtem mandar e receber e aqueles que só curtem mandar. Obviamente, a maioria.

Eu pensava fazer parte desse último grupo até o mês passado, quando peguei Covid e fiquei totalmente isolada por dez dias. Numa tarde de dores no corpo e solidão, não sei bem como, resvalei em algumas mensagens antigas. Em uma, minha filha dizia que estava com saudade. Em outra, meu companheiro falava: "Tô chegando com o vinho". Não sei em que contexto esses áudios foram enviados, e não importa, gostei de ouvir justamente os fragmentos aleatórios, como se descobrisse fósseis de uma vida viva.

Pensei que, quando morrer, quero ser enterrada com boa parte dos meus áudios. Posso ficar para sempre ouvindo as risadas e suspiros de quem amo ou mesmo um desconhecido dizendo: "Giovana, temos novidades para você". E tudo isso na sabedoria do 1x.

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