Giovana Madalosso

Escritora, roteirista e uma das idealizadoras do movimento Um Grande Dia para as Escritoras.

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A rolinha do Mario Prata

Não há forma mais eficaz de arruinar uma obra literária do que a transformando num panfleto

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Já vou logo avisando para não decepcionar depois: o título desse texto não se refere à ave que os homens levam engaiolada atrás do zíper. Posto isso, vamos aos fatos. Esses dias saí para tomar uma cerveja com meu amigo Mario Prata. Nos conhecemos em torno da pandemia, quando ele leu um dos meus romances e me procurou para comentá-lo. Desde então, trocamos um texto aqui, uma fofoca ali, um telefonema acolá. E, vez ou outra, Mario sugere que em minhas colunas eu me atenha à crônica, gênero que trata de situações corriqueiras e que ele teme que esteja sumindo.

Não é só comigo. Como alguns sabem, quando meu colega Antonio Prata sai um pouco desse gênero, atacando de comentarista político ou prosa que o valha, seu pai —a quem chamo de Pratão, para diferenciar do Pratinha— manda para ele um email sucinto, em tom de lembrete, contendo uma única palavra: crônica.

Ave de espécie rolinha relaxando em fio elétrico
Ave de espécie rolinha relaxando em fio elétrico - Caio Rocha/iShoot/Folhapress

No dia em que fomos tomar aquela cerveja, Mario também me enviou verbalmente esse email, dando a entender que eu deveria focar no gênero para o qual mais tenho talento. Para justificar minhas digressões temáticas e estilísticas, lembrei da frase já clássica: quero escrever crônica, mas o Brasil não deixa. Quero escrever crônica, Pratão, mas o patriarcado não deixa.

Big Prata me lembrou que escritores vêm arruinando seus textos ao enfiar dentro deles algumas pautas a fórceps. Ele tem razão: não há forma mais eficaz de arruinar uma obra literária do que a transformando num panfleto, seja essa obra uma crônica, um conto ou um romance —vale lembrar que isso só vale para certas propostas de texto, não havendo nada de errado com outras.

Aceitei o conselho do meu amigo, mas foi só eu sair do bar, caminhando sozinha e amedrontada pela noite, que já comecei a pensar: "preciso escrever sobre os números da violência contra a mulher no Brasil".

Pouco tempo depois, cheguei em casa, no meu apartamento situado em um dos bairros mais verticais da verticalíssima São Paulo, onde plantas e animais só dão as caras entre as esquadrias do Discovery Channel. Naquele silêncio entrecortado pelo pio das buzinas, ouvi um ruído estranho, uma movimentação demasiada viva para o meu canteiro.

No umbral da janela, havia uma ave. E sob aquele ser exótico, um ninho. Em mais de vinte anos em São Paulo, nunca tinha visto nada parecido. Na hora, pensei: só pode ter sido o Mario quem me enviou essa passarinha. Hoje em dia não se manda tudo pelo aplicativo? Pois ali estava o lembrete do meu incansável amigo, um ser vivo em forma de tema, a me mostrar a beleza das coisas corriqueiras, enquanto eu já me perguntava com o quê ela havia construído aquele ninho: restos de fios de luz ou canudos de refrigerante?

Sim, aquilo era uma crônica pronta para ser escrita, a protagonista me fitando de soslaio, zelosa dos seus ovinhos urbanos. Tudo o que eu precisava fazer era descobrir que ave era aquela, já que isso não veio designado na nota fiscal daquele envio.

Sabendo que o Mario entende mais de entregas criativas do que de biologia, resolvi apelar para o meu irmão, praticamente um ornitólogo. Sem fazer estardalhaço, para não assustar a poedeira, tirei uma foto e enviei para ele. A resposta: "com certeza é uma rolinha. Com o aquecimento climático, agora só dá rola por aí."

Pronto. Além de assunto, eu já tinha até uma piada. E um título para a crônica. Só me restava escrevê-la e agradecer ao Prata pela sua adorável insistência.

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