Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

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Gregorio Duvivier

Faz um ano que todos os dias se parecem e hoje não consegui render nada

Difícil rir do que você não vê pra uma plateia que você não ouve

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Faz um ano que todos os dias se parecem. Desde 17 de março que acordamos no 17 de março. Todas as manhãs minha filha me acorda às 5h30 da manhã pra brincar de Polly Pocket. A gente troca a roupa delas, assa bolos de mentira, organiza festas ecumênicas com bichos de pelúcia e bonecas de pano. Elas não sabem da pandemia, as Pollys, e adoram aglomerar: "Passa aqui em casa, amiga" —e a amiga passa, trazendo um macaco, uma princesa e um Playmobil. Que inveja da Polly e desse mundo em que as pessoas se frequentam e trazem amigos e fazem amigos.

Colagem com foto de Gregorio Duvivier no banco do motorista de um carro com uma marmota controlando o volante
Catarina Bessel/Folhapress

Em seguida passo um café enquanto minha filha assiste ao mesmo desenho, "Minnie's Bow Toons", e abro o jornal enquanto ouço, ao fundo, a Minnie cantar a mesma música, "essa é minha loja de laços/ são lindos e eu mesmo faço", e quando leio o jornal começo a sentir a mesma raiva gigante do Bolsonaro que sinto todos os dias. "Se você procura diversão e moda, essa é minha loja de laços." E a raiva vai se alastrando pra todo o mundo que votou nele. Daí a raiva aumenta pro país inteiro que permite que ele exista, o país que pariu essa besta e deu de mamar a ela. "Sejam bem-vindos à minha loja de laços", canta a Minnie, daí passo a sentir raiva de mim mesmo por perder tanto tempo, todos os dias, odiando uma pessoa —ao mesmo tempo em que me penalizo por não odiar o tanto que ela merece.

Daí Giovanna, que estava tentando trabalhar, assume as Polly Pockets e é minha vez de tentar começar a trabalhar. Passo então umas duas horas fazendo de conta que estou prestes a começar algo. Ensaio escrever cenas que não fazem mais sentido porque falam de um mundo que já não existe —o único que conheço. Difícil rir do que você não vê pra uma plateia que você não ouve.

Às 13h30 levo minha filha pra escola, que na pandemia dura só três horas, e então Giovanna e eu lutamos contra o relógio pra fazer caber em três horas as oito horas que precisávamos pra trabalhar. Pronto, já deu 16h30 e não escrevi nada, e Giovanna voltou pra casa com uma criança louca pra brincar de Polly Pocket. Quando dou banho não preciso dar o jantar, e quando Giovanna dá o banho sou eu que dou o jantar. Às 19h30 Marieta dorme e temos, finalmente, um tempo pra nós dois.

"Hoje não rendi nada."

"Tô precisando fazer um exercício."

"Te disse que hoje não rendi nada?"

"Disse."

Pensamos em assistir a alguma coisa, mas antes disso tombamos na cama. Amanhã cedo começa outro dia. Igualzinho.

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