Já vi leis inconsequentes, mas poucas como o PL 4606/19, que acaba de ser aprovado na Câmara e segue para o Senado. O diploma, de autoria do Pastor Sargento Isidório, tem um único artigo, que veda "qualquer alteração, edição ou adição aos textos da Bíblia Sagrada".
O primeiro sentido em que a proposta é inconsequente é bem literal. O texto não prevê nenhuma sanção para quem infringir a norma, de modo que, em termos práticos, tanto faz ela existir ou não. E o autor não determinou nenhuma pena porque fazê-lo aumentaria em muito as chances de o STF declarar a lei inconstitucional.
O segundo sentido em que a regra se mostra inconsequente é o figurado: leviano. O autor, como se depreende da leitura da justificativa do projeto, não ignora que existem muitas Bíblias. Ele próprio lembra que a Bíblia católica tem sete livros a mais do que a protestante. E, especialmente quando entramos no Antigo Testamento, as coisas tendem a ficar bem confusas. Temos, além do original hebraico, o Tanakh, duas traduções canônicas, a Vulgata latina e Septuaginta grega, e uma espécie de paráfrase em aramaico, o Targum. Some-se a isso o fato de que existem diferentes manuscritos de cada um deles.
O resultado, quando comparamos tudo, é essencialmente um mosaico de "alterações, edições e adições". O autor não ousou apontar qual é a versão que vale.
Num ponto, porém, o Pastor Sargento acerta. As vertentes mais dogmáticas das religiões cristãs têm motivos para temer as boas edições da Bíblia. Karen Armstrong mostra que, muito mais do que o ateísmo ou o darwinismo, o que incomodou os religiosos do fim do século 19 e do início do 20 foi o advento da alta crítica, um ramo da teologia que estudava a Bíblia e a vida de Cristo não como milagres, mas como fenômenos literários e históricos. A reação à alta crítica foi justamente o fundamentalismo, do qual o Pastor Sargento parece ser um exemplar típico.
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