Itamar Vieira Junior

Geógrafo e escritor, autor de "Torto Arado"

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Descrição de chapéu Livros

Ao viver sonhos criados por escritor, leitor se torna coautor do que lê

Rosa Montero aponta que autores e público se engajam com a literatura para fugir do confinamento de viver só uma vida

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Vez ou outra a inter-relação entre criatividade e instabilidade mental inspira pesquisadores e autores. Eu mesmo, no meu cotidiano, sinto-me confrontado por leitores e entrevistadores com perguntas que intentam chegar ao âmago do meu processo criativo. Como explicar o que nos leva a escrever? Como revelar as engrenagens da imaginação sem parecer tolo ou louco?

Perguntam-me se eu escrevo uma história a partir de um tema. Um alerta se acende, mas aos poucos a tensão se atenua, ainda que não encontre palavras para me revelar por inteiro. Eu respondo que geralmente a história surge com uma personagem e, desenredando a linha de sua vida, encontro outras personagens e eventos que a conformam e revelam a sua experiência.

O centro histórico de Paraty durante a Flip (Festa Literária Internacional de Paraty) 2023 - Zanone Fraissat - 23.nov.23/Folhapress

Então me pedem para falar mais da pessoa que inspirou a personagem, pedem que eu conte sobre o lugar que habita e como a tornei em alguém ficcional. Por um momento eu torno a ficar tenso, penso como explicar e conto, diante de olhares atônitos, que elas habitam meu corpo, minha mente e que muitas histórias existem paralelamente à minha "vida real" (não encontrei expressão melhor, embora a considere pouco elucidativa).

Digo, com a certeza de que serei taxado como louco, que minha vida se desenrola em muitas dimensões e que, em cada uma delas, lá estou como observador das vidas que necessitamos compartilhar porque a nossa não basta.

É sobre esse desajuste que Rosa Montero escreve em "O Perigo de Estar Lúcida" (Todavia). Um desfile de gênios das artes, especialmente das letras, que ressignificam a máxima de que "de perto ninguém é normal". De Valle-Inclán a Clarice Lispector, Montero esmiúça a relação entre criação e alucinação.

Ursula K. Le Guin afirmava que "a maioria dos romancistas às vezes tem consciência de conter multidões". O escritor colombiano Hector Abad descreve de maneira sublime sua experiência como autor: "Minha fantasia é de que vivo duas vidas: essas que estou vivendo, a quente, e outra que vou imaginando, que não é passado nem futuro, mas um presente distinto. A vida que escrevo". Embora uma pequena parcela dos viventes possua talento para transmutar a criação em arte, viver muitas vidas e histórias parece ser um atributo profundamente humano.

Yuval Harari conta no bestseller "Sapiens" que a fofoca é considerada uma das primeiras ficções elaboradas por nós, humanos. Isso mesmo, você leu corretamente. Fofoca. E ela permanece até hoje entre nós, virando vidas pelo avesso, destruindo reputações, incendiando as redes sociais e as manchetes de jornais.

Antonio Candido escreveu, em "O Direito à Literatura", que o sonho é a uma ficção criada e experimentada por todo e qualquer humano. Escrevemos para que nos leiam e os leitores também fogem, como o escritor, do confinamento que pode ser viver apenas uma vida.

Montero escreve que isso não significa que não gostamos da vida que vivemos, mas, "por maior e melhor que seja, sempre será uma espécie de prisão, uma mutilação de outras realidades possíveis, dos outros indivíduos que poderíamos ser". "Os romances são sonhos que se sonham de olhos abertos, eles nascem do mesmo lugar do inconsciente onde nascem os sonhos", Montero escreve mais adiante.

Mas os leitores também parecem ansiar por esses "sonhos" criados pelo escritor. Eu tenho a convicção de que o leitor não recebe a história pronta, eles precisam literalmente vive-las com sua própria imaginação, projetar personagens e eventos, preencher lacunas da história, desencadeando assim processos químicos e subjetivos que o tornam uma espécie de coautor do que lê.

Retrato da escritora espanhola Rosa Montero - Lucas Seixas - 28.mai.23/Folhapress

E são tantas as evidências entre a criação e a instabilidade dos criadores. Virginia Woolf dizia ouvir vozes e entrou para história com sua obra, mas a morte a encontrou com pedras no rio Ouse. Faulkner passou uma semana completamente embriagado depois de concluir o monumental "O Som e a Fúria". Sylvia Plath, Hemingway e Tove Ditlevsen confirmaram um estudo sueco que diz que os escritores têm 50% mais chance de cometer suicídio. Emily Dickinson viveu grande parte do tempo confinada em seu quarto escrevendo os quase 1.800 poemas que seriam publicados após sua morte.

A própria Rosa Montero nos instiga a refletir ao narrar sua relação com a literatura e com a vida. As emoções que chegam às páginas de seus muitos romances encontram ecos no seu cotidiano, nos pequenos desajustes e na imprevisibilidade que sempre será viver.

Aliás, é quando estamos mais longe da ficção e mais perto do mundo real que nos sentimos miseráveis criadores, incapazes de acompanhar as reviravoltas que é viver neste mundo.

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