João Wainer

Cineasta e fotógrafo, venceu o prêmio Esso de 2013 pela cobertura dos protestos de rua no país e é autor dos documentários "Junho" e "PIXO".

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Descrição de chapéu Boxe

Ouro de Kelvy no boxe representa vitória de luta coletiva além do ringue

Medalha do jovem baiano carrega peso de uma comunidade que briga há anos para resistir e sobreviver

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No último sábado, Kelvy Alecrim Trindade, 15, um jovem morador da favela do Moinho, foi campeão brasileiro de boxe invicto em Cuiabá. No caminho de volta, durante as 28 horas de ônibus que separam a capital mato-grossense do centro de São Paulo, o peso da medalha dourada que o adolescente carregava com orgulho no peito representa uma luta pessoal e coletiva que vai muito além das que aconteceram dentro do ringue.

A academia de Boxe Autônomo foi criada em 2015 por Breno Macedo, Raphael Piva e Guilherme Miranda, inspirada pelas academias de boxe antifascistas da Itália conhecidas como Palestra Popolare.

Kelvy Alecrim da Trindade, em 2019, quando tinha 13 anos na Favela do Moinho
Kelvy Alecrim da Trindade, em 2019, quando tinha 13 anos na favela do Moinho - Tuane Fernandes/Farpa/Folhapress

Elas surgiram como contraponto ao comportamento fascista, machista, homofóbico, xenófobo e intolerante que até hoje é muito comum no universo das academias e dos esportes de luta no mundo todo, vide o apoio que muitos atletas conhecidos deram a Jair Bolsonaro e Donald Trump recentemente.

A ideia do trio de treinadores era criar uma academia acolhedora, onde as liberdades individuais fossem respeitadas e que todos se sentissem bem para treinar, independente de origem, religião ou orientação sexual.

"A gente pensava no esporte como direito inalienável e queria criar um espaço que fosse acessível numa perspectiva antifascista, conectando o esporte a lutas sociais e que pudesse combater dentro do próprio boxe a homofobia e o machismo predominantes" afirma Piva, treinador de Kelvy e um dos fundadores do Boxe Autônomo.

O trabalho começou no final de 2015 na ocupação Leila Khaled, no centro de São Paulo, que recebia muitas famílias de refugiados, especialmente da Síria, e depois se expandiu para a Ocupação Mauá, em frente à Estação da Luz.

Em 2017, o assassinato cometido por policiais da Rota do adolescente Leandro de Souza Santos, 19, na favela do Moinho, região central da cidade, chamou a atenção dos treinadores, que estavam em busca de um novo lugar para trabalhar com crianças.

Eles conseguiram um espaço a poucos metros dali, na Casa do Povo, e por conta do total falta de ações públicas de fomento ao esporte na região não foi difícil encher a academia de novos alunos dispostos ao aprendizado da nobre arte do boxe.

Espremida entre duas linhas de trem da CPTM, a favela do Moinho é a última que restou no centro de São Paulo. Por estar em um lugar muito valorizado e disputado por construtoras, resiste há anos a tentativas de despejo de todo tipo, desde ações da prefeitura até uma série de incêndios criminosos.

Em uma região sensível como essa, o objetivo maior do projeto sempre foi o de formar cidadãos, não atletas profissionais, mas desde o começo um menino de 11 anos recém chegado da cidade de Presidente Dutra, na Bahia chamou a atenção dos treinadores.

Rápido e cheio de vontade, desde os primeiros treinos pedia o tempo todo para competir. Mesmo sem ter a experiência suficiente, treinando apenas duas vezes por semana e lutando contra meninos mais velhos, ele subiu no ringue e foi campeão paulista em 2019.

Logo depois veio a pandemia e os treinos e campeonatos precisaram ser interrompidos, atrapalhando bastante os sonhos de Kelvy, que chegou a pensar em desistir do boxe para trabalhar em uma barraca de milho na feira. Graças ao esforço dos treinadores e ao apoio de outros alunos, o jovem lutador manteve sua rotina de treinos mirando o campeonato brasileiro que aconteceu na última semana.

O resultado não poderia ter sido melhor. Kelvy ganhou as três lutas que disputou e sobrou dentro do ringue. Venceu com propriedade adversários mais velhos e com muito mais experiência. Uma vitória que não é apenas dele, mas de toda uma comunidade que luta há anos para resistir e sobreviver contra tudo e contra todos.

Essa medalha mostra aos ocupantes de cargos públicos e especuladores imobiliários que onde eles só enxergam lucro existe talento e que um olhar acolhedor, amoroso e generoso como o do Boxe Autônomo pode fazer mais por uma comunidade do que um caminhão de dinheiro.

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