João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho

O drama da segunda idade

A partir de uma certa idade, as pessoas deixam de existir socialmente

Meus pensamentos estão com Emile Ratelband, o aposentado holandês que não se conforma com a idade. O homem tem 69 anos. Mas sente-se com 49 --no corpo e na mente. Por que motivo não pode Emile alterar a sua certidão de nascimento?

O gesto, inofensivo para os outros, teria impacto salvífico na sua particular existência. As oportunidades de trabalho seriam mais generosas --apesar de tudo, existe uma diferença entre ser um profissional de meia-idade ou a caminho da terceira.

E, em matéria sentimental, ter 49 funcionaria como bônus. Pelo menos, no aplicativo de encontros Tinder, no qual o pessoal se comporta como no açougue: as carnes mais frescas têm mais sucesso comercial.

Emile Ratelband tem razão. Começo pelo óbvio, que não me canso de relembrar às plateias politicamente corretas: vivemos na era vitimária, em que todo mundo pode ser uma vítima em potência. Mulheres, gays, negros. Ou, então, homens, héteros, brancos --há sempre um motivo qualquer para chorar.

Ilustração de Angelo Abu para João Pereira Coutinho de 13.nov.2018.
Angelo Abu

Nessa orgia de dor, só os velhos parecem excluídos da comiseração universal. O que não deixa de ser injusto: os velhos são as vítimas reais da era contemporânea.

Numa cultura que celebra a velocidade, a juventude e a saúde com uma paixão patológica, os velhos são silenciosamente jogados para as margens da sociedade. A sociedade que trabalha. A sociedade que cria. A sociedade que se diverte.

É como se, a partir de uma certa idade, as pessoas deixassem de existir socialmente. Para quando cotas para os mais velhos --nas universidades, nas empresas, nos programas de televisão?

Mas Emile também tem razão quando compara a sua causa com todos aqueles que decidem mudar de gênero no registro.

Houve um tempo, hoje tido por arcaico, em que a biologia era determinante. Um homem ou uma mulher eram definidos pela configuração anatômica. Esse determinismo biológico ignorava, quando não desprezava, a subjetividade do indivíduo em matéria sexual.

O mesmo ocorre com Emile. Biologicamente, ele beira os 70. Mas, subjetivamente, ele sente-se com menos 20 anos. Devemos permitir que a tirania fisiológica tenha a última palavra na definição da nossa idade?

Penso que não. E, falando de Emile, falo também de mim próprio. Embora, no meu caso, a luta seja a inversa. Tenho 42. Sinto-me com 72. Quando falo com o meu advogado sobre o assunto, ele nunca me leva a sério. "O que você quer é receber dinheiro sem trabalhar."

Protesto e digo que não. Ou, melhor, digo que sim. Mas apenas porque é justo: se tenho 72 anos subjetivos, e se em Portugal é possível pedir a aposentadoria aos 67, sinto que o Estado já me deve cinco anos.

Mas a questão não é apenas subjetiva; é real e cotidiana. As especialidades médicas que frequento começam na letra A (de alergologia) e terminam na R (de reumatologia). Minto: já fui ao U (de urologia; probleminha sem importância) e o médico, um péssimo piadista, despediu-se de mim com um "adeus, até à próstata!".

Tenho exames médicos que são usualmente confundidos com os exames do meu avô. A minha dentição já não é a original.

E, sobre os hábitos de vida, aqui fica um dia típico: acordo às 10h; começo a mexer-me às 10h30; consigo levantar-me da cama às 11h; regresso para a cama às 12h depois do exercício (pilates em banho de imersão).

O almoço é ligeiro, quase sempre à base de líquidos (escoceses e irlandeses). Finalmente, sesta.

Quando acordo, leio, escrevo e converso (tudo sozinho). Só então desligo o aparelho auditivo para reuniões com os meus credores.

O jantar, usualmente excessivo, é em casa. Exercícios de reanimação também. Estou no sarcófago antes das 12 badaladas.

Será que tudo isso tem validade em tribunal? Espero que sim --e tenho a família, ou a parte dela que não levei à loucura, pronta para testemunhar.

Se, apesar de tudo, nenhum juiz se comover com o meu caso, só vejo uma saída: permuta de identidade. Que o mesmo é dizer: o holandês fica com a minha falsa juventude e eu não me importo de ficar com a idade dele e as benesses correspondentes.

Só não garanto que a minha identidade fará sucesso no mercado de trabalho: tenho uma fama que me precede e só o mundo das letras seria capaz de tolerar uma existência tão horizontal.

Sobre o Tinder, avança sem medo, Emile. Se for preciso, fazemos um primeiro encontro a três: você, a moça e o meu urologista para apoiar.

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