João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu Coronavírus

Cinco lições que a pandemia do coronavírus já ofereceu aos mortais

Antes do desastre, os bizantinos discutiam o sexo dos anjos; os ocidentais, o sexo dos banheiros

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Em meio à tempestade, é difícil tirar conclusões definitivas. Mas existem cinco lições que a pandemia do novo coronavírus ofereceu aos mortais.

1 Sem os “invisíveis”, nossa vida desabava

Todas as semanas vou ao supermercado fazer compras. Isso significa que os funcionários estão lá para me atender. E que existiram incontáveis trabalhadores que produziram e transportaram os produtos que consumimos no conforto burguês das nossas quarentenas.

Esses são os “invisíveis” –ou, como diria Hillary Clinton com aquela elegância que só ela tem, "os deploráveis”. Em tempos normais, você nem percebe que eles existem; e, no subconsciente do seu egoísmo, até pensa que eles têm a obrigação natural de o servir.

Em tempos anormais, como esse, eles são a diferença entre a vida civilizada e o retorno ao estado da natureza. São os “invisíveis” que cultivam o que você come; que limpam o que você suja; e que ventilam os seus pobres pulmões quando eles deixam de funcionar.

O meu pessimismo não me permite acreditar que, daqui em diante, olharemos para os “invisíveis” com gratidão e vergonha. A memória é curta. Mas enquanto a tempestade não passa, devemos olhar para eles como se fosse a primeira vez.

2 – “Small is beautiful”

“Problemas globais exigem soluções globais.” Sempre que escutava esse clichê, sentia uma vontade feroz de puxar um revólver. O que significa isso?

Nada. Se a pandemia ensina alguma coisa é que problemas globais, às vezes, exigem soluções locais. Ou como lembrava Niall Ferguson em um ensaio recente para a Spectator, “small is beautiful”.

Historicamente falando, os grandes impérios nunca souberam lidar com as pestes (Ferguson lembra a Roma de Marco Aurélio ou de Justiniano, mas poderia acrescentar a gripe russa de 1889, que foi tão letal para o czarismo como as investidas dos bolcheviques). As cidades-estado, pelo contrário, sempre mostraram uma maior resiliência.

O mesmo aconteceu agora. Impérios como a China, os Estados Unidos ou a União Europeia oscilaram entre a negação do problema e a relutância em atuar. Pequenas unidades soberanas, como Israel, Hong Kong, Taiwan ou Singapura são apontadas como exemplos no combate ao novo coronavírus.

Além disso, nos grandes países com lideranças populistas e mentecaptas, foram as chefias intermédias (governadores, prefeitos, autoridades sanitárias e outros) que fizeram a diferença nas respectivas comunidades.

Para problemas globais, a escala é importante, sim. Mas no sentido inverso ao do clichê.

3 – A ciência é melhor que o pensamento mágico

Um dia, quando o historiador do futuro olhar para o início do século 21, ele contará a história hilária, porém triste, de como uma sociedade rica e decadente começou a duvidar da eficácia das vacinas.

Exemplo: a vacina contra o sarampo salvou milhões de vidas desde a década de 1960? Indiferente, dirá o historiador. Ele explicará que uma legião crescente de políticos, curandeiros e membros da classe média entediada puseram em causa um dos maiores progressos da ciência médica em toda a sua história.

Pelo menos, até chegar 2020 e o mundo implorar por uma vacina contra o novo coronavírus. Até o momento, existem 86 tratamentos em pesquisa para matar "o bicho", informa a revista Economist. Mas é provável que só daqui a um ano, ou talvez mais, exista uma vacina eficaz contra a doença. Se existir, claro.

Até lá, você poderá saborear a beleza natural de um mundo sem vacinas. É lindo, não é?

4 – Democracias ainda são melhores que ditaduras

Ah, ainda me lembro com esses olhos que a terra um dia há de comer dos sonetos apaixonados que se escreviam pelo “modelo chinês”. Uma combinação feliz de autoritarismo e livre mercado que, no milagre dos milagres, reconciliava socialistas e liberais, coisa nunca vista na história do pensamento político.

O fato de a China ser uma ditadura (peço desculpa pela deselegância da palavra) era um pormenor sem a menor importância.

Pois é, ser uma ditadura ainda tem importância. Sobretudo quando ocultamos certas verdades (como uma epidemia) e tentamos silenciar certos críticos (como o médico Li Wenliang, já vitimado pela Covid-19, que alertou para a letalidade do novo vírus).

Em 2020, o Ocidente que aplaudia o “modelo chinês” desperta para a seguinte realidade: durante anos, fomos depositando nas mãos de uma ditadura (peço desculpa novamente pela palavra) a tecnologia e a farmacologia de que dependem as nossas vidas.

Não foi muito inteligente, pois não?

5 – Bye bye guerras culturais

Retorno ao historiador do futuro. Já imagino o livro que ele irá escrever. Um dos capítulos procurará ilustrar os debates que apaixonavam os homens pré-pandemia de 2020.

"Será que os banheiros devem ser separados por gênero?" e "ou devem ser para todos os gêneros para não haver discriminação?" são alguns exemplos disto.

O historiador do futuro, melancolicamente, dirá "os bizantinos, antes da invasão turca, discutiam o 'sexo dos anjos'. Os ocidentais, antes da grande pandemia, discutiam o 'sexo dos banheiros'".

Uma das consequências da destruição econômica que a Grande Paralisação vai trazer é o retorno das questões políticas pesadas.

Qual o papel do Estado? Como promover o crescimento econômico sem nos afogarmos em dívidas? O que fazer em relação ao desemprego? Como resistir aos apelos da política autoritária, que sempre promete uma ilusão de segurança em troca de liberdade?

Pessoalmente, vou ter saudades das guerras culturais ou identitárias do passado. Éramos felizes e nem sabíamos.

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