João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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'A Revolução dos Bichos' mostra que 'mentalidade de gramofone' resiste

Quando lemos a obra com os olhos de um adulto, somos capazes de identificar figuras históricas do comunismo

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Passaram esta semana 75 anos da publicação de “A Revolução dos Bichos”, de George Orwell. E passaram, talvez, uns 30 e poucos desde a primeira vez que o li.

Era uma simples fábula, pensava eu na altura, em que os animais de uma granja se revoltam contra o dono (o incompetente senhor Jones) e passam a tomar conta do negócio.

Fatalmente, os porcos não são melhores que os humanos e rapidamente a granja volta a cair nas garras da opressão (suína).

O escritor britânico George Orwell
O escritor britânico George Orwell - Reprodução

Assim pensava uma criança, ligeiramente aturdida pela violência da história (e pela morte, inesquecível, do cavalo Sansão). Só mais tarde a novela de Orwell ganhou outros contornos como sátira e alegoria da Rússia soviética. Corrijo. Da Rússia soviética sob Stálin – uma diferença importante.

Quando lemos “A Revolução dos Bichos” com os olhos de um adulto, somos capazes de identificar nas personagens centrais algumas figuras históricas do comunismo.

O velho Major é Marx “lui même”, convocando os animais da granja para lhes revelar o “estranho sonho” de um mundo onde “todos os animais são iguais”.

O senhor Jones representa a velha monarquia czarista, indolente e decadente, que agoniza no seu torpor enquanto os animais passam fome.

Os porcos Napoleão e Bola-de-Neve são, respectivamente, Stálin e Trotsky – os herdeiros de Major, intérpretes da sua filosofia Animalista, e posteriormente inimigos mortais.

Ausente dessa galeria, e como bem observou Christopher Hitchens, está Lênin – não há nenhum porco que o represente. Mero esquecimento? Opção consciente para preservar a economia da história?

Não creio. O objetivo de Orwell não era destruir o “mito soviético” desde a origem. Pelo contrário: era defender o socialismo original dos crimes cometidos em seu nome – e, se possível, revivê-lo.

Que esses crimes tenham começado com Lênin, e não apenas com Stálin, eis uma hipótese que nem o realista George Orwell foi capaz de enfrentar e denunciar.

Por outro lado, entendo a mensagem da obra: pelo abuso, pela mentira e pelo terror, os porcos (comunistas) tornam-se indistinguíveis dos homens (capitalistas) que eles juraram combater.

É uma comparação infeliz, sobretudo para um socialista democrático como Orwell. Será possível comparar o camarada Stálin ao capitalista Churchill? Será possível comparar a União Soviética de 1945 com o Reino Unido do mesmo período?

Não era —e Orwell sabia disso. Esse, aliás, foi o grande objetivo dos seus escritos depois da experiência traumática na Guerra Civil Espanhola, que quase lhe custou a vida às mãos dos capangas soviéticos: acordar a esquerda, a sua esquerda, para a natureza sanguinária de Stálin.

A mensagem era indigesta, ou “inoportuna”, sobretudo quando a União Soviética lutara ao lado dos aliados contra o fascimo?

Talvez fosse. Mas nem por isso menos verdadeira –e o prefácio (censurado) que Orwell escreveu para a primeira edição de “A Revolução dos Bichos” parece-me hoje mais importante do que a novela propriamente dita. Porque lida com questões intemporais sobre a liberdade de expressão.

Como pergunta (e responde) Orwell, “será que qualquer opinião, por mais impopular —por mais estúpida, até— que seja, tem o direito de ser difundida? Formule-se a questão dessa maneira, e qualquer intelectual inglês se sentirá obrigado a responder que sim. Mas quando ela se reveste de uma forma concreta, e alguém pergunta “e que tal, por exemplo, um ataque a Stálin? Tem direito de ser difundido?”, a resposta quase sempre será não.

Para o autor, isso não é liberdade; é conveniência política, é censura ideológica, é mentira moral.

E se muitos se entregam a essas práticas porque acreditam ingenuamente que “a defesa da democracia envolve a destruição de qualquer independência de pensamento”, outros o fazem porque têm “mentalidade de gramofone”: estão sempre dispostos a tocar o disco da moda por covardia, cupidez ou má-fé.

“São os liberais que temem a liberdade”, acusava Orwell em 1945, “e os intelectuais que querem jogar lama no intelecto”.

Passaram 75 anos. Nada mudou.

As citações de Orwell são da edição brasileira de “A Revolução dos Bichos” (Companhia das Letras), com tradução de Heitor Aquino Ferreira.

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