João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Aprendi com a Folha que os leitores de hoje podem ser os amigos do futuro

Recebo mensagens que oscilam entre 'meu querido' e 'seu bosta' porque a intimidade é isso, afeto e desafeto

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A primeira coisa que aprendi com a Folha foi a não tratar o leitor no plural. Confissão bizarra, essa, em que nunca tinha pensado antes.

Um dia, uma amiga que também trabalha neste jornal, aconselhou: “Você trata o leitor como se estivessem vários lendo o jornal ao mesmo tempo. Isso soa meio estranho”.

O diretor foi menos direto: um dos grandes charmes de Otavio Frias Filho era sugerir correções quase como se fosse ele a estar errado. “Uma vez que o leitor é sempre um, talvez fosse importante falar só para ele e não para a família inteira.” Se isso não é elegância, eu não sei o que é a elegância.

Só me posso defender dizendo que não é assim em Portugal —e esse pormenor marca uma diferença abissal entre as culturas dos dois países.

Aqui, na velha pátria, o texto é para os leitores, para as massas, para o mundo inteiro, até para Marte, agora que a Nasa lá chegou. É para ser lido no púlpito das igrejas ou no pelourinho da cidade, como se fosse uma proclamação real. É um texto com gravata, paletó e, nos dias solenes, uma cartola na cabeça.

Ilustração de uma pessoa deitada de lado com um dos joelhos flexionado e uma das mão apoiando uma máquina de escrever, que está no lugar da cabeça da pessoa. Há um papel longo datilografado saindo da máquina e um megafone na outra mão. O traje é social (calça, casaco e suspensórios) e a gravata é uma seta que aponta para cima.
Angelo Abu/Folhapress

De tal forma que, quando passei a tratar os leitores portugueses, em publicações portuguesas, com as lições aprendidas no Brasil (“prezado leitor”, “prezada leitora”, no singular), um antigo diretor lusitano fez a crítica no sentido inverso: “Mas você conhece o leitor de onde para falar só para ele? É amigo lá de casa?”.

Não é fácil contentar gregos e troianos. Mas vejo agora que há vantagens nos dois registros.

A escola portuguesa alimenta o ego do colunista e a sua incurável megalomania: “Humanidade, escutai-me!”. A humanidade escuta e, quando reage, também veste paletó e gravata (“senhor professor”, “eminência”, “santidade”). Eis, em suma, a escola Greta Thunberg do colunismo.

No Brasil, o colunista é um vagabundo. Mas no bom sentido da palavra: alguém que trata o leitor como um confidente, sentado à mesma mesa, partilhando o mesmo vinho, as mesmas alegrias e angústias.

Já cheguei a pensar que, nessas sessões semanais de psicanálise, deveria ser o colunista a pagar ao leitor, e não o contrário.

E o leitor é recíproco. Recebo mensagens que oscilam entre “meu querido” e “seu bosta” porque a intimidade é isso mesmo: afeto e desafeto. É justo.

Embora, aqui entre nós, confesso uma certa preferência pelos leitores que me tratam por “Little Couto”.

Se eu fosse um homem sexualmente inseguro, diria que alguém andou falando com antigas namoradas. Mas é só criatividade onomástica, eu sei.

Mais problemáticos são os leitores que, vez por outra, me agradecem por um escrito qualquer que os levou a mudar de vida. A procurar o divórcio, a abandonar o emprego, até a jogar os filhos insolentes no orfanato (essa inventei, mas você entende a ideia).

Honestamente, não sei quantos leitores enfiei no convento ou no bordel. Ou quantos tirei de lá, agora que penso nisso.

Fico sempre envaidecido e aterrorizado, em partes iguais, e só descanso quando o advogado me diz: “Tranquilo, Little Couto, você não pode ser processado por responsabilidade moral”.

Talvez não, mas aqui vai o desabafo: será que os leitores não sabem que metade do que escrevemos é fruto da irresponsabilidade, da insônia, do entusiasmo etílico ou dos três ao mesmo tempo?

Não sabem —e ainda bem. Porque essa é a segunda lição que aprendi com a Folha: os leitores de hoje podem ser os amigos do futuro. Vários me apareceram, em carne e osso, como alunos na universidade.

Outros, movidos por afinidades eletivas, transformaram-se nos melhores comparsas na aventura intelectual da vida. Eles, aliás, são uma das razões por que cruzo o Atlântico para visitar o Brasil com frequência.

E, se o leitor tem certa queda para o romantismo, fique sabendo que só não casei com algumas leitoras porque elas fizeram questão de conhecer o noivo primeiro. Como nos meus tempos de alistamento militar obrigatório, devo ter falhado nos testes psicotécnicos.

Parabéns, Folha, pelos 100! E obrigado pelo melhor presente que um escritor pode ter: vocês, leitores.
Peço desculpa e corrijo: você, leitor, ser único e inconfundível, a quem deixo a minha vênia.

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