João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu Filmes

'Pinóquio' de Guillermo del Toro nunca irá chorar lágrimas de vergonha

Filme capta a perfeição do livro de Carlo Collodi, obra-prima da literatura italiana do século 19

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Tiro o meu chapéu a Guillermo del Toro e ao seu "Pinóquio". Especialistas em animação saberão explicar os méritos técnicos da obra. Mas como resistir aos méritos literários, que captam na perfeição o livro de Carlo Collodi (1826 – 1890) que muitos conhecem e poucos leram?

O livro é uma obra-prima da literatura italiana do século 19. É também um dos mais violentos "romances de formação" para crianças (e não só) que conheço. O fato de ter como protagonista uma marionete de madeira não diminui o impacto emocional da história.

Pelo contrário: a mensagem de Collodi em 1883, no contexto histórico da recente unificação italiana, é que um espírito cívico defeituoso e um sentimento moral atrofiado fazem de nós pobres marionetes —bonecos sem vida própria, sempre à mercê dos interesses dos outros.

Desenho baseado em cena do filme citado. Pinóquio, um boneco de madeira, destacado em vermelho, aparece desconjuntado, ainda sem vida, na mesa da oficina em que foi feito. Acima da mesa há um janela e um porta-retratos  destacado com detalhes também em vermelho, onde vemos a imagem de uma criança real, de carne e osso
Ilustração de Angelo Abu para coluna de João Pereira Coutinho - Angelo Abu

"Se um homem não sabe a que porto se dirige", escreveu Sêneca, "nenhum vento lhe será favorável". Collodi assinaria em baixo. Se a nação italiana tivesse alguma hipótese de florescer, ela precisava de bons cidadãos e, mais raro ainda, de cidadãos bons.

É por isso que o drama de Pinóquio não é a queda para a mentira, nem sequer o seu nariz temperamental que cresce e denuncia o mentiroso. Isso é um detalhe que apenas o senhor Walt Disney simplificou para lá do tolerável.

O drama é ser uma alma dividida por dois desejos incompatíveis: por um lado, ele quer seguir uma vida de egoísmo e errância, fugindo constantemente às suas obrigações; por outro, Pinóquio quer ser um ser humano de verdade.

A lição de Collodi é que ser um ser humano de verdade pressupõe a formação de um caráter. Nesse processo, a educação formal tem um papel importante e não é por acaso que grande parte das infelicidades que se abatem sobre o boneco são consequência direta de ele fugir da escola.

Entre as desgraças mais célebres, está o momento em que Pinóquio e um dos seus coleguinhas preguiçosos começam a ganhar a fisionomia (e a fonia) de jumentos.

Mas o caráter não se forma apenas na escola. Ele depende também da capacidade de não cedermos a todas as tentações e caprichos, incluindo os outros, os interesses e as fragilidades dos outros, no nosso universo existencial.

Descobrir que existe no mundo alguém tão importante quanto nós, ou até mais importante, é o princípio da nossa salvação.

O filme de Guillermo del Toro é brilhante sobre esse último ponto. Sim, existem liberdades que estão ausentes do livro: a história do filme decorre no século 20, em pleno fascismo italiano, e Geppetto é uma figura trágica, marcada pela morte do filho Carlo durante a Primeira Guerra.

Mas, quando Pinóquio entra em cena, ali temos o "bom selvagem", no sentido anti-rousseauniano do termo, que quebra tudo em volta e só obedece aos seus instintos mais primários.

O pai tenta civilizá-lo; o Grilo Sebastião também (no livro, o grilo raramente aparece).

Nada funciona. Para complicar as coisas, o boneco morre e ressuscita vezes sem conta —uma marionete é assim: como não tem vida própria, também não tem morte própria. E como não tem morte própria, a vida tem para ele um valor relativo.

Mas Pinóquio, apesar de imortal, não é poupado à experiência do abandono e do sofrimento. O sofrimento que sente e o sofrimento que provoca nos outros, começando em Geppetto.

Germina nele uma consciência. E Rousseau tinha razão: a descoberta da consciência é o princípio da nossa vulnerabilidade.

Com esse novo sentimento, Pinóquio parte à descoberta de Geppetto. Encontra-o na barriga do tubarão gigante, tal como Jonas encontrou a salvação na baleia bíblica, depois de também ele ter desobedecido às injunções de outro "pai".

E agora, Pinóquio?

Valerá a pena continuares como marionete imortal?

Ou a humanidade que tanto procuras vale bem o sacrifício de te tornares mortal?

Não conto o fim, que me parece ainda mais belo que o do livro. Mas assistindo àquele final, dei por mim a murmurar os versos de W. H. Auden que me assombram desde o dia em que os li pela primeira vez:

God may reduce you
on Judgement Day
to tears of shame,
reciting by heart
the poems you would
have written, had
your life been good.

Pinóquio nunca irá chorar lágrimas de vergonha.

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