João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Bento 16 e Habermas discutiram relação entre política e religião

Joseph Ratzinger já era um dos grandes intelectuais do nosso tempo antes de estar à frente da Igreja Católica

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Morreu Joseph Ratzinger, um dos grandes intelectuais do nosso tempo. Também foi papa, mas deixo essas matérias para vaticanistas e teólogos.

Já gostava de ler Ratzinger antes de Bento 16 existir. Descobri-o nos primeiros anos do século 21, ao ler um diálogo que ele travou com Jürgen Habermas, em 2004, na Academia Católica da Baviera.

Dois livros de capa preta figuram lado a lado, e invertidos verticalmente em relação ao outro. O que diferencia os dois é o símbolo que cada um ostenta na capa: Um traz um crucifixo, representando a bíblia, a religião; enquanto o outro, uma balança, representando a justiça, a Constituição
Ilustração de Angelo Abu Para coluna de João Pereira Coutinho - Angelo Abu

O tema era, simplesmente, o mais importante tema do pensamento político contemporâneo: quais são os fundamentos éticos do Estado liberal e secular?

São um produto do próprio processo democrático, que assim garante os seus pressupostos normativos sem precisar da religião para nada?

Ou são anteriores a esse processo?

Em termos ainda mais simples: qual deve ser a âncora da ação legislativa e política?

Jürgen Habermas, um filho dileto do iluminismo continental (e kantiano), oferecia a resposta clássica: o Estado constitucional democrático não precisa de uma justificação religiosa ou metafísica. Ele próprio engendra uma justificação autônoma, uma racionalidade própria, que todos os cidadãos racionais acabarão por aceitar sem esforço.

Claro: Habermas não rejeita que, no decorrer da história, muitos conceitos teológicos foram "traduzidos" para uma linguagem secular. Quando afirmamos que todos os seres humanos são dotados de uma dignidade igual e absoluta, estamos no fundo a secularizar a velha ideia bíblica de que o homem foi feito à imagem e semelhança de Deus.

Mas Habermas está mais interessado na separação, e não na continuidade, entre o religioso e o político, mesmo aceitando que ambos devem dialogar sempre num contexto pluralista. Corrijo: em atitude paternalista, o autor espera que os não crentes ajudem os crentes a traduzirem a sua fé para a linguagem da "polis".

A argumentação de Habermas é elegante, porém insuficiente. Ele parece sofrer do velho vício de querer conservar o bolo e comê-lo.

Por um lado, o filósofo alemão quer conservar conceitos éticos que nos foram legados por Jerusalém, desde que purificados dessa pegada jurássica.

Por outro, ele nunca questiona se é possível conservar esses princípios —como a essencial dignidade dos seres humanos, por exemplo— arrancando-os do solo fecundo que permitiu o seu florescimento.

Pior: ele deposita na razão (e na razão democrática) um apego natural a tais valores, o que me parece, no mínimo, imprudente. Será preciso recuar à Alemanha de 1933, quando os seus compatriotas votaram como votaram?

Talvez seja —e Ratzinger, outro alemão, começa por aqui na sua resposta a Habermas. Se o direito apenas nasce da vontade conjuntural das maiorias, é preciso questionar primeiro o que pretendem as maiorias. Podemos ter surpresas desagradáveis.

É por isso que as bases éticas do direito não podem ser apenas um produto do próprio direito, afirma Ratzinger. Se assim fosse, os tão falados "direitos humanos" dependeriam apenas da vontade do legislador.

Há valores que brotam da natureza comum dos seres humanos, independentemente da bondade de quem governa. O principal contributo político do cristianismo foi o de oferecer a César uma interpretação racional desses valores naturais, que são simultaneamente possibilidade e limite da ação política.

Pretender saber quem tem razão nesse diálogo é começar pelo lado errado. Em filosofia, não são as respostas que interessam; são as perguntas.

E a pergunta que Habermas e Ratzinger enfrentaram continua a queimar as sociedades contemporâneas.
Basta olhar para o Brasil.

Que tipo de relação deve existir entre a política e a religião? Alguma? Nenhuma?

E entre crentes e não crentes? Haverá ainda um espaço comum onde ambos se encontrem e —heresia das heresias!— se eduquem mutuamente?

É a proposta de Ratzinger: fé e razão são a base de uma sociedade decente.

A religião precisa da razão para controlar as suas metástases, uma observação especialmente pertinente quando o diálogo entre os dois pensadores decorreu três anos depois do 11 de Setembro.

Mas a razão também é dotada dos seus excessos, sobretudo em contexto científico. Quem duvida desse lado lunar deveria fazer uma visita a Hiroshima e Nagasaki. (Esperemos que Kiev não faça parte dessa lista).

Sem as intimações do "leite da ternura humana", seremos apenas carne para canhão.

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