João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Com chocolates nos bolsos e a polícia no meu encalço, o teatro espera por mim

Desde quando os mais pobres se confundem com os delinquentes?

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A balança gemeu: estou acima do peso indicado. Que fazer? Tradicionalmente, dieta. No meu caso, fechar a boca ao chocolate (inimigo nº 1), aos jantares pesados (nº 2), aos almoços idem (nº 3) —e, já agora, abandonar o sedentarismo (nº 4, mas, na verdade, nº 1) e o hábito decadente de usar o táxi para ir do quarto ao banheiro (nº 5).

Fachado do Camden People's Theatre
Fachado do Camden People's Theatre, em Londres - Reprodução

Mas então lemos: não será a gordura uma forma de "identidade"? E não estarei eu pronto a abraçá-la, combatendo o preconceito de uma sociedade que impõe sobre mim seus ideais de beleza inatingíveis? Meu coração hesita (antes do infarto, claro). Por um lado, a obesidade mata; por outro, o estigma associado à gordura pode ser ainda pior. Que fazer?

Com um sorriso largo e os bolsos recheados de chocolatinhos Lindt, pergunto à minha senhora se ela já ouviu falar do "fat acceptance movement" —o movimento pela aceitação de corpos gordos. Ela diz que já: é uma das primeiras causas de divórcio em todo mundo.

Deprimo. Quando finalmente tinha encontrado uma identidade, eis que o matriarcado esmaga Little Couto.
Mas a esperança é a última a morrer, como diria o rei Luís 16 quando contemplava a guilhotina. No Daily Telegraph, leio que um teatro em Londres (o Camden People’s Theatre) procura um novo diretor-executivo. Salário: 50 mil libras por ano. Formação acadêmica: nenhuma.

Em nome da inclusão, basta que o candidato venha das classes "trabalhadora, dependente, criminosa e/ou baixa".

O anúncio de emprego provocou reações ferozes. Desde quando os mais pobres se confundem com os delinquentes?

É uma boa pergunta. Que, aqui entre nós, só revela o nível de alienação das elites "woke" quando olham para o povão cá em baixo. Pobres, dependentes, criminosos —não é tudo a mesma coisa?

Talvez não seja, dementes, mas o que conta é a intenção. Além disso, cadastro pode ser currículo. Depende das necessidades da empresa. Se o objetivo do teatro é ter alguém especializado em contabilidade criativa, alguma experiência na fraude e no trambique pode ser um talento relevante.

Sem falar de trabalhos mais pesados, como quebrar os ossos de críticos hostis às produções da companhia. Uma entrevista de emprego terá sempre de acautelar esses cenários:

"Experiência profissional?"

"Arrombamento e sequestro."

"Lavagem de dinheiro?"

"Faço serviço completo: lavagem, secagem e polimento."

"Investidas ortopédicas?"

"Tíbias e perônios."

"Está contratado."

Maravilha! Compro minha passagem para Londres e, antes de embarcar, assalto a loja do aeroporto. Com chocolates nos bolsos e a polícia no meu encalço, o teatro espera por mim.

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