João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Descrição de chapéu Rússia China Irã

Oposição venezuelana luta também contra Putin, Erdogan, Xi...

Para Anne Applebaum, autoritarismo do séc. 21 deve ser entendido como empresa multinacional

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É lindo sonhar. É triste quando o sonho acaba. Colegas meus, acadêmicos respeitados, acreditaram durante uns tempos que Nicolás Maduro seria afastado do poder pela força do voto popular.

Fiz o que pude. Argumentei contra. Ironizei. Recomendei banhos frios.

Nada os demovia. Nas suas cabeças, Maduro iria reconhecer a derrota, abandonar o palácio presidencial e dedicar o resto dos seus dias à contemplação e à poesia.

Vieram os "resultados". Maduro era o "vencedor". Vieram também as repressões e as mortes.

Bateu uma depressão geral. Querem ver que a Venezuela não é uma democracia?

Quando escutei essa pergunta, mandei entrar os enfermeiros. Já nada estava nas minhas mãos, exceto aconselhar descanso e, já agora, a leitura do mais recente livro da historiadora Anne Applebaum, "Autocracy, Inc.: The Dictators Who Want to Run the World".

Vamos ao que interessa: um regime autocrático e cleptocrático, regra geral, só cai com violência. Moderada? Severa? Não interessa. Violência.

Mas a "vitória" de Maduro não se explica apenas pela natureza do seu regime, que jamais deixaria de controlar a narrativa com a fraude e a brutalidade.

Explica-se por um outro pormenor, que Anne Applebaum explica com detalhes: a oposição não lutava apenas contra Maduro. Lutava contra ele, contra a Rússia de Putin, a China de Xi, o Irã de Khamenei, a Turquia de Erdogan e todos os regimes que, de uma forma ou de outra, mantêm a Venezuela a funcionar.

Uma derrota em Caracas seria sentida em Pequim, Moscou e outras capitais. Como tolerar isso?

Eis o ponto de Applebaum: o autoritarismo do século 21 deve ser entendido como uma empresa multinacional que, em nome do poder e da riqueza, vai partilhando informações, pessoal, tecnologia e recursos.

Só para ficarmos na Venezuela, veja só o cosmopolitismo do lugar: o dinheiro é russo; a tecnologia é chinesa; os jagunços são cubanos; até os tratores vêm da Belarus.

Não é caso único. Na Rússia em guerra, por exemplo, os drones são iranianos; os mísseis são norte-coreanos; a defesa diplomática fica a cargo de vários países africanos na ONU; o gás e o petróleo são comprados, a preços amigos, pela China e pela Índia.

Imagem baseada nas latas de tomate Campbell imortalizadas pelo artista Andy Warhol. Nas 3 latas aqui retratadas, há a imagem do Super Bigote, personagem criado pela propaganda do governo venezuelano de Nicolas Maduro para se auto promover.  Além de Super Bigote, também lemos nos rótulos especificações, como Low Fat, sugar free, gluten free e made in China
Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho de 26 de agosto de 2024 - Angelo Abu/Folhapress

No século 20, a ideologia comandava a política entre dois blocos perfeitamente reconhecíveis. Hoje?

Sim, a ideologia ainda serve de verniz para justificar a "multipolaridade" do mundo pós-Guerra Fria. Mas, raspando esse verniz, a principal preocupação dos líderes do conglomerado é afastar dos seus rebanhos qualquer tentação democrática.

Você sabe: aquelas ideias perigosas como "transparência", "direitos humanos", "separação de Poderes", "liberdade de expressão", "multipartidarismo" e outras fantasias que só atrapalham o abuso e a pilhagem.

É isso que explica o arco-íris de regimes que fazem parte da multinacional autocrática. Tem para todos os gostos: comunistas, capitalistas, nacionalistas, monárquicos, teocratas. O negócio é mais importante que as filosofias.

E, naturalmente, há falsos democratas também, que ajudam a compor o quadro nas lavanderias do Ocidente. São aqueles que "não fazem perguntas", escreve Applebaum, com ironia.

São os banqueiros ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que cai em certas contas.

São os agentes imobiliários ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que compra propriedades em Londres ou na Riviera Francesa.

São os empresários ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que compra as suas empresas.

São os clubes de futebol ocidentais que não perguntam de onde vem o dinheiro que traz jogadores a preços estratosféricos para alegria das torcidas.

E são os governos ocidentais, claro, que colocam nas mãos da China ou da Rússia a sua segurança energética ou tecnológica.

Exemplo: em 2014, Putin invadiu a Crimeia. Em 2015, assinava-se o contrato para a construção do gasoduto Nord Stream 2 entre a Rússia e a Alemanha. Isso é para levar a sério?

Ler Anne Applebaum é um exercício de demolição. Quando muitos discutem seriamente conceitos eruditos de geopolítica —"hegemonia imperialista", "Sul Global" etc.—, eis que surge alguém com números, nomes e fatos.

Só para mostrar como a mais velha profissão do mundo continua unindo ocidentais e não ocidentais, conservadores e progressistas, colonizadores e colonizados.

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