João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

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Pessoas que vivem em democracia dão menos importância à verdade do que em ditadura

Em livro, Erica Benner fura o balão dos nossos clichês democráticos para formular certas questões heréticas

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Não gosto de democratas sem cérebro. Você conhece: gente que enche a boca com a palavra "democracia" como se isso bastasse para fazer boa figura na feira das vaidades. Ou, pior ainda, gente que se diz democrata desde que os resultados de uma eleição sejam do seu agrado.

Prefiro democratas realistas. Gente que defende a democracia por ser a pior forma de governo, com a exceção de todas as outras (obrigado, Churchill). Gente que sabe, sem ilusões, que a democracia ainda é uma forma imperfeita de governo, vulnerável a tiranos e demagogos.

Biden e Trump no debate da CNN - CNN/Xinhua

É por isso que celebro o mais recente livro de Erica Benner, "Adventures in Democracy: The Turbulent World of People Power", ou aventuras na democracia: o mundo turbulento do poder popular.

Sempre gostei da prosa irônica, elegante, erudita de Benner. Os seus livros sobre Maquiavel, por exemplo, são a melhor introdução moderna ao incompreendido florentino.

Dessa vez, Benner optou por furar o balão dos nossos clichês democráticos, sejam de esquerda ou de direita, para formular certas questões heréticas.

Algumas são conhecidas. Será que progresso e democracia andam sempre de mãos dadas? (Não, não andam).

Será possível uma democracia funcional com níveis gritantes de desigualdade? (Não, não é.)

E que dizer das pulsões tirânicas do povo, do sábio povo, que muitas vezes entrega nas mãos de um falso salvador a sua liberdade? (Aconteceu várias vezes.)

Para responder às suas próprias perplexidades, Benner viaja pela história —da Grécia antiga aos Estados Unidos modernos, sem esquecer a sua biografia entre vários continentes— e as respostas nem sempre são consoladoras ou simples.

Três perguntas, porém, merecem uma atenção especial. Sobretudo quando olhamos para os Estados Unidos, para a França ou para o Reino Unido e vemos a emergência do radicalismo eleitoral.

A primeira procura saber se não estaríamos bem melhores com um governo de sábios, capaz de decidir cientificamente sobre os assuntos mais importantes do momento —guerra e paz, alterações climáticas, imigração etc.

Essa conversa tornou-se onipresente desde 2016, com a eleição de Donald Trump. Se a democracia produz Trump e outros do gênero, não seria melhor conceder o direito de voto a quem realmente entende do assunto?

A resposta de Erica Benner é negativa. A admiração irrestrita pelos sábios ignora a matéria de que eles são feitos. Ignora que o excesso de confiança na razão pode produzir monstruosidades dogmáticas.

Além disso, ignora também a natureza competitiva das elites intelectuais, que muitas vezes preferem o poder à verdade.

Democracias saudáveis devem contar com a opinião informada dos especialistas. Mas entregar as chaves da pólis a um comitê de sábios é desconhecer que a "imodéstia epistêmica" é a pior forma de arrogância.
E que dizer da imigração?

O tema tem sido central nas discussões políticas dos Estados Unidos e da Europa. E, como escreve a autora, existem duas posições simplórias que se enfrentam com uma violência letal: a primeira defende uma política de fronteiras abertas; a segunda, de fronteiras fechadas.

Uma política racional de imigração recusa qualquer um desses polos, procurando reconciliar as necessidades do país com as necessidades das populações migrantes.

Mas o que inquieta Benner é a posição daqueles "humanistas" que defendem uma política de fronteiras abertas porque isso é vantajoso para eles.

Os imigrantes, bem vistas as coisas, vêm para servir os nativos em trabalhos duros ou precários, mesmo quando têm formações acadêmicas diferenciadas.

Não é estranho o silêncio desses "humanistas" quando há médicos dirigindo táxis ou professores universitários trabalhando como operários da construção civil?

Escreve Benner, em observação brilhante: "Quando os estrangeiros estão super-representados nas classes mais baixas ou 'inferiores', especialmente em democracias que já apresentam altos níveis de desigualdade econômica, uma vantagem de curto prazo para os nativos pode dar-lhes uma sensação de privilégio e direito. Isso traz à tona ecos sutis e não tão sutis da velha sensibilidade 'Nós somos os senhores aqui'."

Um conselho: nunca leve a sério um "humanista" pró-imigração que não esteja disposto a partilhar o seu estatuto econômico, social e simbólico com quem chega.

Abrir a porta para receber a encomenda da Uber Eats não é a mesma coisa que abrir a porta do seu hospital ou do seu departamento universitário para receber um colega do outro lado do mundo.

Por último, ninguém nega que as nossas democracias estão saturadas de mentiras.

No infame debate entre Donald Trump e Joe Biden, tivemos duas ao vivo: de um lado, um homem que mente mesmo quando respira (Trump); do outro, um octagenário senil (Biden) que, durante quatro anos, foi vendido pelos democratas como um Einstein em plena juventude.

Patético: os mesmos progressistas que soltavam os cachorros quando alguém duvidava dessa versão são aqueles que imploram agora pela desistência de Biden.

Mas Erica Benner prefere outra hipótese: será que as pessoas que vivem em democracias dão menos importância à verdade do que as pessoas que vivem em ditaduras?

Em ditadura, as mentiras oficiais magoam —no sentido físico e metafísico. Razão pela qual o único "poder dos sem poder", como escreveu Václav Havel, é manter ainda a distinção crucial entre a verdade e a mentira, até nos pequenos gestos do cotidiano.

Nas democracias, mentir faz parte do jogo. De que vale a verdade quando tudo que interessa é a vitória do meu candidato?

Ler Erica Benner é defender e respeitar a democracia pelas suas virtudes inegáveis. A maior delas, opinião pessoal, está na possibilidade de remover os maus governantes sem derramamento de sangue (obrigado, Popper).

Mas é também manter os olhos bem abertos para os seus vícios inerentes. Um democrata ingênuo é um escravo a prazo.

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