João Pereira Coutinho

Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

João Pereira Coutinho
Descrição de chapéu União Europeia

Realidades e fantasias

A França estava à beira do abismo, mas conseguiu dar um passo em frente

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Havia um jogador de futebol português que era conhecido pelas suas frases deliciosamente ignaras. "Prognósticos só no fim do jogo", disse ele um dia, antes de o jogo começar.

A minha preferida, porém, é essa: "Estivemos à beira do abismo, mas conseguimos dar um passo em frente".

"Touché." É dele que me lembro quando assisto ao primeiro turno das legislativas na França. O país estava à beira do abismo, mas conseguiu dar um passo em frente. Como?

Votando, de forma majoritária, em dois partidos radicais —a Reunião Nacional e a Nova Frente Popular— cujos programas econômicos, se fossem implementados, levariam o país à ruína. Como explicar essa atração pelos extremos?

Sim, a história da França é pródiga nesses namoros. E estou longe de ser um fã de Emmanuel Macron.

Mas começo a pensar, olhando para a França, para a Europa, para os Estados Unidos, para o Ocidente, que há certo "desejo de morte" democrático que só Freud consegue explicar.

Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho
Ilustração de Angelo Abu para a coluna de João Pereira Coutinho - Divulgação

Ou, em alternativa a Freud, talvez Raymond Aron (1905- 1983), esse gigante intelectual do século 20 de quem leio a última lição no Collège de France, corria o ano de 1978.

O título é "Liberty and Equality" e foi recentemente publicado em inglês com prefácio —pobre— de Mark Lilla e posfácio —notável— de Pierre Manent.

No fim de longa e solitária carreira, Aron apresenta a defesa da democracia liberal e das três liberdades que a definem e que cabe ao Estado garantir.

As liberdades pessoais são as primeiras. A liberdade de vivermos sem temer pela nossa integridade física, a liberdade de movimento dentro do nosso país e para fora dele, a liberdade de escolher uma profissão, de professar uma fé, de exprimir uma opinião sem temermos a guilhotina.

As segundas são as liberdades políticas, presentes na hora de votar, de ser eleito, de protestar contra o poder instituído.

As terceiras são as liberdades sociais —"direitos sociais", para usar a expressão comum— que devem estar presentes na educação dos cidadãos, no tratamento das doenças, no auxílio à velhice.

Como escreve Aron, são liberdades reais, concretas, não meras abstrações ideológicas. Quem vive em democracias liberais já teve o prazer de as experimentar. Não são perfeitas?

Pois não. Mas o que é perfeito? Que regime, que sistema?

A Rússia de Putin, que fascina Marine Le Pen?

A Palestina do Hamas, que exerce o mesmo efeito sobre Jean-Luc Mélenchon?

Mesmo na sua imperfeição, essas liberdades fazem parte da gramática básica de qualquer democracia liberal e isso deve ser acarinhado como a raridade histórica e geográfica que é. Nunca a "pólis" foi tão livre como é hoje no Ocidente.

O problema, admite Raymond Aron, é que existe uma diferença entre a liberdade real e o sentimento que muitos têm dessa liberdade.

Fato: a desigualdade econômica, por exemplo, contribui para a experiência subjetiva de que não somos livres.

Mas existe também, em linguagem claramente freudiana, o que Aron designa como a preferência pelo "princípio do prazer": tudo aquilo que frustra os meus desejos é, por definição, opressivo e liberticida.

As liberdades de que Aron fala são sempre o produto de um equilíbrio e de um compromisso entre liberdades rivais. Não podendo ter tudo, temos apesar de tudo bastante.

Ou, adaptando a frase para o país de Macron, só é possível garantir o Estado de bem-estar social se os franceses adiarem a aposentadoria dos 62 para os 64 anos, por exemplo.

Para os "seres de desejo", qualquer compromisso é uma ameaça, que autoriza o repúdio e até a destruição do que foi historicamente conseguido.

Não é por acaso que a esquerda radical de Jean-Luc Mélenchon e a direita radical de Marine Le Pen prometem reverter a idade de aposentadoria para os 62 anos. Quem paga? Mistério.

Assim está a França. Problemas? Vários. A insegurança, o custo de vida, o abandono dos "periféricos", até a insuportável arrogância de Macron.

Mas, como lembra a revista Economist, falamos ainda de um país onde o crescimento econômico está acima da zona do euro —e onde as taxas de pobreza estão abaixo. Nada que justifique a atração pelos extremos e o mundo iliberal que eles oferecem.

Exceto, claro, para quem não suporta a imperfeição da liberdade, sonhando com a perfeição da fantasia.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.