Em uma cena de "O Barbeiro de Sevilha", peça de Pierre Beaumarchais, Fígaro se esconde para surpreender as tramoias de don Bartholo e don Basile.
Depois, quando encontra Rosine, diz a ela: "Vosso tutor e vosso professor de canto, acreditando-se sozinhos aqui, acabam de falar abertamente...". Rosine então interrompe: "E o senhor os escutou, senhor Fígaro? Mas o senhor não sabe que isso é muito feio?". Fígaro dá uma resposta magistral: "Escutar? É, entretanto, o que ainda há de melhor para bem ouvir".
Essa frase, escrita no século 18, é a melhor chave para a conhecida composição de John Cage, "4'33''". Trata-se de uma obra para piano concebida em 1952. Tem três movimentos, um de 33 segundos, outro de 2 minutos e 40 segundos e o último de 1 minuto e 20 segundos. No início de cada um deles, o intérprete levanta a tampa do teclado, criando expectativa; no final, ele fecha. Apenas isso. Nenhuma tecla é acionada.
Em 1951, Cage visitara uma câmara anecoica, dispositivo que isola e absorve todo ruído. Descobriu que o silêncio absoluto não existe, porque ouvia os sons de seu corpo, produzidos pelo sistema nervoso e pela pulsação.
Em "4'33''", a tampa levantada faz com que os ouvintes prestem atenção no silêncio, que vem carregado de sons, graças a ruídos inevitáveis produzidos pela própria audiência. Escutar é ainda a melhor maneira de ouvir.
Imagino o quanto não deve existir de estudos em psicoacústica sobre audição seletiva. Sou mais próximo de Gaston Bachelard: "Sentimos perfeitamente que é necessário ultrapassar uma barreira para escapar aos psicólogos, para entrar num domínio que 'não se observa', em que nós próprios não nos dividimos mais em observador e observado. Então o sonhador funde-se por inteiro no seu devaneio. Seu devaneio é sua vida silenciosa" ("A Poética do Devaneio").
Tanto na situação de Cage quanto na de Bachelard, o ouvinte incorpora o silêncio. No primeiro caso, somos levados pelas sonoridades que habitam aquele silêncio provocado, e no segundo, pelos poderes de uma imaginação intensificada.
Inevitável, assim, concluir que o silêncio varia, formado que é por configurações diferentes: o silêncio das bibliotecas, o silêncio da casa vazia, o silêncio da noite, o silêncio do templo, o silêncio do sono, o silêncio da espera, o silêncio da ansiedade, o silêncio culpado ou que culpabiliza são alguns exemplos de sensações.
É Bachelard ainda que cita, em seu "A Poética do Espaço", uma passagem da peça "O Anúncio Feito a Maria", de Paul Claudel. Sublinha, nela, a união ontológica entre o invisível e o inaudível:
"Violaine (cega) "" Eu ouço... Mara "" O que ouves? Violaine "" As coisas existirem comigo". O silêncio é prenhe de presenças.
A leitura silenciosa torna-se bem comovente quando alguém move os lábios, formando para si mesmo uma palavra não pronunciada.
As pinturas são silenciosas. Estamos aqui além da metáfora: a hipnose que exerce um Vermeer sobre o espectador o obriga ao longo olhar que percebe o mistério sem elucidá-lo.
Mesmo quadros veementes põem-nos diante do silêncio: Argan mencionou em algum lugar o grito do vestido vermelho na Madalena aos pés da "Crucifixão" de Masaccio, mas esse grito soa apenas no interior de quem o contempla.
É possível avançar mais. Há um silêncio constitutivo no teatro, no cinema, na música. Nossa atenção é um silêncio que se atrela. Nela não cabem senão aqueles sons, que de algum modo paradoxal transformaram-se em silêncio (silêncio que nos pertence, como o vermelho que grita no quadro). O desrespeito a esse silêncio por ruídos indesejados, esses sim, autênticos, é uma tortura.
Odiamos perturbações que rompem o invólucro de quietude necessário para ver e ouvir. Então, tosse, conversa, qualquer barulho torna-se como que ofensivo.
Um fenômeno curioso ocorre nas salas de concerto. Há momentos em que o compositor faz a orquestra chegar quase ao imperceptível, negociando com o silêncio, em sublimes pianíssimos. Aí, justamente, multiplicam-se tosses, cadeiras remexidas e rangentes.
Cage diria que tais perturbações fazem parte da música ou, pelo menos, da audição. Tenho para mim que é fruto de um nervosismo diante do que parece ser o desvanecimento do som, mas que deveria ser, antes, a revelação de um silêncio feito de sons.
Não é tão simples cultivar o silêncio. Embora ele esteja sempre em nós como o indizível que sustenta, que pressupõe. Esse indizível que Carlos Drummond de Andrade evocou em seu poema "Os Lábios Cerrados": "nossa existência, apenas uma forma impura de silêncio".
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