José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

José Henrique Mariante
Descrição de chapéu jornalismo mídia

O cercadinho do mercado

Jornais abdicam do contraditório e de tentar apurar as motivações de Lula

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

"O que está por trás do conflito entre Lula e BC e quais os impactos para a economia." O título, publicado por O Estado de S.Paulo na terça-feira (7), promete uma resposta, mas não a entrega. A reportagem ouve agentes do chamado mercado, que predizem catástrofes e classificam como ingênuo o discurso de Lula. O que está por trás do conflito, porém, continua lá, quieto, escondido, pois o mercado, não menos ingênuo, também não sabe o que se passa.

Outras tantas reportagens sobre economia nos últimos dias, em diversas publicações, não fizeram diferente. Analistas insistiram na necessidade de um Banco Central autônomo, da manutenção das metas de inflação, da responsabilidade fiscal e na certeza de que a língua solta do presidente da República só faria as taxas futuras subirem. "Uma coleção de equívocos", disse à Folha José Roberto Mendonça de Barros. Na esteira de outras declarações parecidas, o economista afirmou que "está ocorrendo à esquerda o que ocorria à direita: falar para a plateia". Lula, por essa tese, estaria falando a um cercadinho próprio, como o antecessor, Jair Bolsonaro, que pregava todas as manhãs aos desvairados de camisa canarinho.

Uma colega da Redação então pergunta: quem comporia o cercadinho do petista? Os desvalidos de camisa vermelha? Estariam preocupados com as curvas de juros? Enquanto Bolsonaro defendia criminalização do aborto, o direito de andar armado e sair atirando, de expressar ódio sem consequências e que índio quer celular, enfim o mundo palpável do cidadão de bem, Lula achou por bem elevar a conversa e discorrer sobre os fundamentos da política fiscal com seus seguidores?

Dois caminhos para discussão. Primeiro, o da mídia. Escreveu-se bastante sobre o falatório do presidente, mas pouco se apurou sobre suas razões. Em um e outro escaninho restou a versão de que ele já estaria antecipando o fracasso de um primeiro ano de governo com meros 40 dias de caneta na mão. Apontar para Roberto Campos Neto seria adiantar também um bode expiatório. O presidente do BC, na visão de petistas, estaria sabotando o mandatário, mostrou uma reportagem da Folha no último fim de semana.

É um direito da esquerda imaginar que quem foi votar de camisa canarinho e participava do grupo "Ministros Bolsonaro" no WhatsApp possa apresentar algum viés na condução de seu trabalho. Seria, então, dever das Redações apurar a existência de conflito de interesse ou as motivações do governo em precipitar o clima de desconfiança. A mídia, em sua maioria, pulou a etapa de investigação e foi direto para a da crítica. Em dez dias, só na Folha, cinco editoriais se debruçaram sobre o assunto, apenas um restrito a argumentações técnicas.

Ilustração de Lula vestindo terno preto, camisa branca, gravata vermelha e sapatos pretos. Ele está andando da esquerda para a direita e tropeça em uma vírgula vermelha. O fundo é um gradiente que começa preto no alto da imagem e fica branco na parte inferior da composição.
Carvall

A boa prática jornalística pediria também algum investimento no contraditório. Quase não houve. Uma das exceções ao cercadinho do mercado foi um artigo de André Lara Resende no Valor Econômico, desdenhando do propalado abismo fiscal e distribuindo espetadas em instituições financeiras e veículos de imprensa, inclusive neste jornal. Outro economista distante da corrente majoritária, André Roncaglia comentou na Folha sobre "a abusiva autonomia do Banco Central".

A segunda trilha para debate seria a da comunicação de Lula, vista como uma espécie de repetição, para alguns aprimorada, para outros piorada, da polarização tão cara ao presidente anterior. Talvez a política nacional não seja mais viável longe dos extremos. O Globo fez a conta: em 40 dias, 20 menções explícitas à "herança maldita" de Bolsonaro.

A expressão lembra o primeiro mandato, quando Lula também soltava os cachorros, não no presidente do BC, pois Henrique Meirelles era então uma de suas âncoras de credibilidade, mas em diversas outras direções. Tempos diferentes, em que os latidos da manhã eram ponderados pelos bombeiros do próprio governo à tarde, e o noticiário editado à noite se consolidava pela média do dia. Não há mais dia ou noite no jornalismo. O que Lula fala vai para o ar imediatamente, como ocorria com Bolsonaro, sem filtro, sem edição, sem rascunho. Quando Haddads e Padilhas entram no circuito, estrago feito ou não, fica difícil modular qualquer coisa.

Ainda mais na dinâmica atual do noticiário, uma corrida anabolizada pelo ctrl C + ctrl V, que empilha declarações, sem que elas se sucedam, se modifiquem ou se expliquem.

Ritmo aparentemente confortável para Bolsonaro, candidato antissistema, que se valia do antagonismo com a mídia para alimentar as suas hordas. Levou um tempo para jornalistas entendermos como lidar com o discurso desenfreado.

A estratégia não parece fazer muito sentido para Lula, que se elegeu construindo pontes e supostamente não irá a lugar algum se as queimar. É isso? Alguém tem que apurar.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.