José Henrique Mariante

Engenheiro e jornalista, foi repórter, correspondente, editor e secretário de Redação na Folha, onde trabalha desde 1991. É ombudsman

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Descrição de chapéu jornalismo mídia yanomami

A rara glória de ser atemporal

País celebra sua jornalista sem idade, enquanto a Folha tropeça em 'trintonas'

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O repórter ao lado já era maior do que o cargo. Ocorre bastante em Redações, onde plano de carreira é no máximo pauta, nunca realidade. A percepção do colega novato se confirmou serenamente nos anos seguintes, em coberturas e reportagens especiais. O sujeito viraria escritor, mas naquele dia, com naturalidade, pedia desculpas ao entrevistado, com quem falava por telefone, ao perguntar a sua idade. "Coisas da Folha", justificou ao personagem de sua história, mas também ao foca que acompanhava curioso a cena.

É coisa do jornal mesmo. Está no Manual da Redação (pág. 228): "O padrão é informar a idade (não a data de nascimento) dos personagens principais da notícia, especialmente em caso de entrevista, morte e doença…". "Caso não seja relevante do ponto de vista noticioso, é facultado omitir a idade quando o personagem assim o preferir", o verbete pondera.

Glória Maria nunca falou sua idade porque, jornalista que era, sabia que seus pares nunca respeitariam sua preferência pelo segredo. Como escreveu Zeca Camargo, segredo que ela "se divertia em guardar e confundir quem tentasse desvendá-lo". Obituários nos principais veículos foram elegantes ao contornar o assunto ou, diante da inexorável obrigação jornalística de informar, tratá-lo com a devida vênia.

Pouco depois de noticiar a morte de Glória na manhã de quinta-feira (2), a Folha escorregou no tema, em tom de fofoca ("fazia de tudo para esconder a idade"), atribuindo-lhe um número já no subtítulo de uma nota sobre o fato. O dilema não é informar ou deixar de informar, mas como informar. Concorrentes, em textos equivalentes, provaram que não era tarefa complicada.

Reduzir o alimentado segredo de Glória a um capricho é o caminho fácil. Mais interessante e divertido seria mostrar como ela conseguiu fazer isso driblando a própria longevidade. Glória não envelheceu na TV, ela foi se transformando com o passar do tempo e a função. A repórter de rua dos anos 1970 foi a Glória de uma geração, enquanto a apresentadora do Fantástico, três décadas mais tarde, era a Glória de outra audiência. Foram várias Glórias e, por isso mesmo, "ninguém vai conseguir fazer a conta", disse a própria.

Ilustração de uma mulher com os braços cruzados e uma tarja preta na frente dos olhos. Ela tem cabelos lisos e brancos na altura dos ombros e veste uma camiseta branca com uma estampa das letras "BSB" em preto no peito. O fundo é todo marrom claro.
Carvall

Coincidência ou não, a Folha já havia escorregado dias antes ao escrever sobre mulheres e suas idades. Várias leitoras reclamaram do título "Backstreet Boys atiram cuecas para trintonas em show nostálgico em SP". O lide da reportagem sobre a apresentação da boyband dos anos 1990 ampliava o universo da descrição e das queixas: "Uma multidão de mulheres trintonas e quarentonas abarrotava o Allianz Parque, em São Paulo, na noite desta sexta-feira. Estavam ali para relembrar a adolescência e cantar a plenos pulmões hits dos Backstreet Boys…".

Se a ideia era ser simpático ou engraçado, não funcionou. "Por que mulheres não podem envelhecer e gostar de algo? Por que qualquer mulher é considerada velha demais?", indagou uma leitora. Outra escreveu que, como ela, muitas no estádio não tiveram a chance de ir a show equivalente durante a adolescência pobre, superada apesar da misoginia do país que vê refletida no texto. "Uma matéria com expressão depreciativa e fora de moda para designar mulheres e rotulá-las a partir da idade", sintetizou uma terceira.

Soa mesmo fora de moda, porém nem tanto na Folha. Uma busca no site do jornal mostra várias ocorrências recentes de "trintonas" e também de "trintões", inclusive em relatos de shows. Certamente alguém perceberá etarismo ou mesmo uma realidade de mercado, já que parece mais rentável trazer para o país bandas que agradam a quem consegue pagar ingressos mais caros. Inevitável, no entanto, é constatar o clichê. Tanto pior quando entendido como algo ofensivo, além de clichê.

Imagem é tudo

Yanomamis acreditam que a imagem de uma pessoa capturada por uma câmera é parte integrante do retratado. Segundo reportagem publicada pela Folha na sexta-feira (3), uma crença até mais justificada do que o mercantil direito de imagem elaborado pelos não indígenas. Os membros que morrem só descansam depois de um ritual funerário longo e complexo, onde todos os vestígios do morto são apagados. Inclusive suas imagens.

O site Sumaúma, que antecipou a dramática situação do grupo, contou que negociou com lideranças yanomamis a publicação das fotografias que denunciavam a desnutrição severa de suas crianças. A exceção foi aberta a partir do entendimento de que era necessário mostrar ao país e ao mundo o descalabro da situação. Pela lógica yanomami, tirar uma foto de um doente é como tirar um pedaço dele, enfraquecê-lo ainda mais.

A questão que fica é saber se a grande mídia, presente em Roraima, tem levado o ritualismo dos sofridos personagens em consideração.

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