O rio é estreito, a outra margem meia centena de metros adiante. Suas águas reluzem um azul cobalto intenso, não o acinzentado de muitas águas fluviais (mas tampouco o azul celeste mais brilhante que já vi, no Soča, rio espremido num vale da Eslovênia).
Seria esta cor derivada, à sua maneira, do céu límpido que rutilava naquela tarde amena suplantando a manhã gélida que saudara os princípios da primavera na Escócia?
Entráramos na última semana de março deste ano. Eu caía num devaneio bucólico enquanto observava outra característica espantosa do rio Spey: a urgência de sua correnteza. Não estávamos num declive acentuado, mas a água corria veloz para o norte, rumo ao oceano. Em 50 quilômetros e meia dúzia de corcovas, ele se despejaria numa gelada baía do mar do Norte.
Era para aquele ponto que viajava minha mente, imaginando a chegada dos salmões selvagens prenhes, enfrentando a forte correnteza em busca do berço do rio que era também seu berço: depois que nascem, os salmões selvagens percorrem milhares de quilômetros no oceano mas voltam exatamente ao lugar onde nasceram para depositar seus preciosos ovos. E o rio Spey é um dos mais icônicos rios de salmão do Atlântico do mundo.
São deliciosos peixes selvagens pescados nos meses permitidos. Especialmente se degustados com a elegante companhia de um grande scotch whisky, como os produzidos pelas destilarias ao longo do Spey (a região chamada Speyside). Não comi o salmão nesta visita, mas provei algumas taças do The Macallan, o mais famoso e premiado uísque escocês. Mais: isto aconteceu na propriedade desta marca –a The Macallan é uma rara destilaria que não somente fica à margem do famoso rio como tem um trecho dele passando dentro da propriedade.
Para quem aprecia whisky é um raro privilégio visitá-la. Ali fica tanto a velha construção (Easter Elchies House), que ornamenta até hoje os rótulos desta marca que completará dois séculos no ano que vem; quanto moderníssimas instalações de sua nova destilaria, um edifício cuja cobertura (ondulada e recoberta de relva, mimetizando os terrenos em volta) combina arquitetura arrojada, soluções hi-tech e uma respeitosa harmonia com a natureza.
A The Macallan é cheia de manias benfazejas, que pude constatar in loco quando convidado a conhecê-las de perto. A marca não produz uísques "blended" (misturas do produto de várias destilarias), mas "single malts" (produtos de uma única destilaria). Não acrescenta caramelo ou outros ingredientes para padronizar a coloração do líquido, que é sempre natural, derivado do tempo (e tipo) de madeira.
Vive quebrando recordes (uísque ou vinho mais caro vendido em leilão, por quase US$ 2 milhões de em 2019 –The Macallan 1926, 60 anos; uísque mais velho no mercado – The Macallan The Reach 81 anos). Destina o lucro para causas beneméritas.
Envelhece seus destilados ("spirits") em barris próprios usados na confecção de jerez (e que podem ser de madeiras diferentes, mas sempre impregnados pelo perfume do mítico vinho da Andaluzia espanhola). E, dadas as diferenças nas madeiras originais (como carvalho francês ou americano) e os tempos de envelhecimento de cada barril (anos e décadas), faz inúmeros blends resultando em uma enorme variedade de rótulos, com incontáveis aromas e colorações.
Provei alguns deles na visita. Não há espaço para descrever as nuances de cada um, a elegância especial, as diferenças de caráter. O 30 anos Double Cask, o Home Collection, o Edition nº 4, o Rare Cask Black...
E o Edition nº 6, sorvido ante o rio Spey que o inspirou, com o rótulo azul harmonizando com as águas (e o céu nelas refletido) daquele alvorecer de primavera.
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