Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque

Afinidades eletivas

Muitos clássicos da literatura não se rendem ao vazio do conservadorismo

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Oautor alemão Johann Wolfgang Goethe, em quadro de Gerhard von Kuegelgen - Reprodução

Em abril, escrevi sobre como a boa literatura seria capaz de fazer oposição a toda espécie de conservadorismo reacionário. Na ocasião, comentei que a mensagem humanista do texto literário não estaria condicionada ao alinhamento ideológico do autor —ou pelo que muitos conhecem como engajamento literário—, mas se faria notar ao despertar o leitor para uma reflexão aprofundada sobre a condição humana.

Um exemplo disso é o romance "Afinidades Eletivas de Goethe", publicado em 1809. No texto, o autor utiliza-se da ideia de processos químicos para descrever a dinâmica do relacionamento das personagens. Tudo teria origem na descoberta espontânea de afinidades entre indivíduos, demonstrando que: "Assim como toda coisa mantem uma relação consigo mesma, também guardará uma relação com as demais."

Portanto, o grau de afinidade entre as pessoas seria responsável por determinar a intensidade dos seus relacionamentos, resultando tanto em uniões mais ou menos estáveis como em rupturas temporárias ou terminativas. Essa ideia é ilustrada pelo drama do casal Charlotte e Eduard, cujo casamento ganha novas configurações e finda de maneira trágica com a chegada de dois convidados em sua propriedade.

De primeiro momento, Charlotte e Eduard parecem completar um ao outro, mas Eduard aguarda a visita de um capitão amigo seu de juventude. Com a chegada do Capitão, Charlotte sente-se cada vez mais isolada do marido e o relacionamento entre os homens tornar-se cada vez mais íntimo. Charlotte, por sua vez, resolve chamar a filha adotiva de volta para a casa. Nisso a história ganha contornos ainda mais complexos. À medida que as duas mulheres se reaproximam, o Capitão e Charlotte passam a nutrir um interesse mútuo, enquanto Eduard apaixona-se pela enteada.

Já emocionalmente distantes, marido e mulher têm um filho, mas a adição de outro elemento à fórmula torna a situação ainda mais instável. O Capitão vai embora, a criança morre afogada, a enteada comete suicídio e o marido morre, deixando Charlotte com tempo e dinheiro à disposição para refletir e correr atrás do prejuízo.

Embora leitores como o professor Ritchie Robertson, da Universidade de Oxford, vejam nesse romance uma defesa de valores tradicionais, posicionando-se dentre outras coisas contra o divórcio —interpretação que, apesar de válida, não encontra muito amparo no pensamento de Goethe— outros, como a pesquisadora Susan E. Gustafson, da Universidade de Rochester, afirmam que a formulação de Goethe para o conceito de afinidade eletiva teria implicações revolucionárias.

Em seu recente estudo "Goethe's Families of the Heart", Gustafson esclarece que, ao utilizar o conceito de afinidade eletiva para repensar o ideal de família e de relacionamentos em toda a sua obra, Goethe teria antecipado importantes discussões sobre amor e sexualidade em nossa cultura. A dinâmica das afinidades eletivas seria aplicável à hipótese contemporânea de que nossos interesses afetivos e amorosos seriam fluidos, múltiplos e não excludentes, envolvendo tanto pessoas do mesmo sexo como do oposto.

Assim, Gustafson nos chama a atenção para que a obra literária de Goethe teria antecipado a concepção de que no inconsciente humano não existiria um significante para a diferença, ou seja, a distinção sexual não seria suficiente para determinar a identidade do nosso objeto de desejo. Cumpre notar como uma história escrita há 200 anos fornece material para a reflexão de questões contemporâneas. Uma prova de que muitos clássicos da literatura ocidental não se rendem ao vazio do conservadorismo.
 

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