Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
Descrição de chapéu Livros Filmes Oscar 2024

O que é um romance negro ou judaico?

'Ficção Americana' faz refletir sobre expectativas e estigmas que cercam a produção literária de grupos minoritários

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Ainda na tentativa de assistir a todos os filmes indicados ao Oscar deste ano, resolvi dar uma chance a "Ficção Americana" (2023), vencedor do prêmio na categoria de melhor roteiro adaptado.

Baseado em "Erasure" (2001), romance de Percival Everett, o filme conta a história de Monk, um professor universitário e escritor, negro e de classe média alta, cujo manuscrito do seu mais novo livro —uma releitura de Ésquilo— é enviado para o seu agente, mas não consegue chamar a atenção das grandes editoras pois, apesar de bem-escrito, não é considerado uma obra que acrescente algo à experiência afro-americana.

Cena do filme 'Ficção Americana', de Cord Jefferson
Cena do filme 'Ficção Americana', de Cord Jefferson - Divulgação

Mas o que é um romance negro? Será que não bastaria o escritor ser negro para que o seu romance também seja percebido como tal?

Frustrado, Monk coloca essas questões para o seu agente e, mais tarde, durante a sua participação em um festival literário, chega à conclusão de que as editoras realmente esperam que um romance afro-americano não passe de algo feito especialmente para aplacar o sentimento de culpa da população branca —sendo, portanto, incapaz de provocar uma reflexão mais séria sobre a diversidade e a complexidade da vivência de indivíduos negros nos Estados Unidos.

Afinal, como um dos personagens chega a dizer durante o filme: "As pessoas brancas acham que querem a verdade, mas não é bem assim. Elas somente buscam a absolvição".

Embora o filme trate dos problemas e estereótipos relacionados à literatura afro-americana, outras produções minoritárias são igualmente afetadas por um estigma semelhante, fazendo com que alguns autores ora se sintam intimados a escrever de uma só maneira sobre um único tema, ora sejam criticados por tentarem expandir o leque das suas possibilidades criativas.

Assim, não é de se surpreender que, ao escutar o desabafo de Monk durante o filme, eu tenha me recordado dos comentários de dois escritores judeus sobre as expectativas de críticos e leitores com relação à literatura judaica.

Nos ensaios reunidos em "People Love Dead Jews: Reports from a Haunted Present" (2021), a pesquisadora acadêmica e romancista Dara Horn sugere que o interesse das pessoas por histórias sobre os judeus e o Holocausto nem sempre é um sinal de que a nossa sociedade esteja se tornando menos antissemita.

Segundo a autora, tudo depende de como e por quem essas histórias são contadas. Pois, o que as pessoas normalmente consomem sobre o Holocausto tende a relegar os fatos históricos e a experiência judaica a um segundo plano, sendo, por conta disto, quase sempre utilizado como justificativa para um exercício meramente narcísico de sinalização de virtudes.

Já em "Por que Escrever: Conversas e Ensaios sobre Literatura" (2022), Philip Roth leva essa mesma reflexão um pouco mais além.

Ao comentar as críticas que recebeu dos seus correligionários por aquilo que eles consideravam ser um retrato negativo dos judeus norte-americanos em obras como "Adeus, Columbus" (1959) e "O Complexo de Portnoy" (1969), Roth aproveita a oportunidade para explicar o que normalmente atrai um escritor para o campo da literatura e o que significa fazer ficção: "Ao escrever uma história sobre um adúltero, meu propósito não é tornar claro quão certos estamos todos nós ao desaprovar o seu comportamento nem ficar desapontados com o homem. Não se escreve ficção para afirmar princípios e crenças que todo o mundo parece sustentar nem para garantir a adequação dos nossos sentimentos".

Para Roth, os críticos que o acusavam de estar prestando serviço aos antissemitas —quando ele simplesmente se propunha a retratar personagens judeus como pessoas normais, ou seja, susceptíveis às fraquezas que afligem os demais seres humanos— estariam equivocados em acreditar que, ao atacarem a obra, fariam algo pelo combate ao antissemitismo: "Isto não é lutar contra o antissemitismo, e sim deixar-se subjugar por ele: submeter-se a uma restrição da possibilidade de pensar e de comunicar-se, porque estar consciente e ser franco seria perigoso demais".

De volta a "Ficção Americana", Monk resolve pregar uma peça nas editoras e produz outro livro, dessa vez recheado de clichês, porém perfeitamente de acordo com as expectativas que o mercado editorial e o publico leitor possuem a respeito das experiências sobre as quais os autores negros estariam culturalmente autorizados a tratar. O livro, no entanto, é um sucesso (mas eu não pretendo contar o resto dessa história aqui, porque, sim, vale muito a pena assistir ao filme).

Resta-me, portanto, concluir chamando a atenção do leitor para o fato de que sempre saímos mais pobres quando tentamos adequar toda e qualquer expressão literária às nossas expectativas.

Afinal, como concluiu Philip Roth: "O teste de qualquer trabalho literário não está em saber a amplitude de sua representação — uma vez que isso pode ser característico de um tipo de narrativa —, mas na veracidade com que o autor revela o que escolheu para representar".

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