Juliana de Albuquerque

Escritora, doutora em filosofia e literatura alemã pela University College Cork e mestre em filosofia pela Universidade de Tel Aviv.

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Juliana de Albuquerque
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Peça do teatro ídiche é metáfora da experiência de judeus na Europa Oriental

'O Dibuk', de Sch. An-Ski, revela seu apelo universal ao encenar história inspirada em misticismo tradicional do folclore judaico

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Entre os mais célebres dramas do teatro ídiche, "O Dibuk" (1913-1916), de Sch. An-Ski (1863-1920), pode ser descrito, simplesmente, como uma história de amor que culmina em possessão e exorcismo.

Inspirado no folclore judaico, "O Dibuk" se baseia em uma antiga superstição de que as almas pecadoras não conseguiriam se desprender desta realidade e passariam a ocupar uma espécie limiar entre dois mundos, podendo, em determinadas circunstâncias, aderir à superfície de objetos e plantas, bem como aos corpos de animais e seres humanos.

Ilustração de Lívia Vigano para a leitura dramática de "O Dibuk" em comemoração aos 60 anos da montagem brasileira na Casa do Povo, em São Paulo - Divulgação

A peça começou a ser escrita durante uma expedição etnográfica empreendida por An-Ski aos territórios da chamada Zona de Assentamento, área que abrigava a maioria das populações judias do Império Russo que, na época, padecia de restrições de habitação em boa parte do vasto território controlado pelas forças imperiais.

Durante essa expedição que durou de 1911 a 1914, o grupo liderado por An-Ski esteve em mais de 70 cidades, colhendo milhares de fotografias, objetos e uma infinidade de canções, melodias religiosas e lendas; além de depoimentos sobre as tradições e práticas cotidianas de um mundo que estava prestes a desaparecer.

Segundo o relato do músico e compositor Joel Engel, que participou da expedição com An-Ski, a inspiração para "O Dibuk" teria justamente surgido de uma cena que ambos testemunharam durante uma visita à cidadezinha de Yarmolyntsi, na Ucrânia. Quando, ao pernoitarem na residência de um rico judeu local, eles presenciaram o momento em que o dono da casa interrompeu o flerte da filha com um jovem estudante de yeshivá (escola religiosa judaica) para anunciar que havia decidido fazer o casamento dela com outro rapaz.

Naquela noite, An-Ski acordou de sobressalto ao som do choro inconformado da moça, levantou-se e passou a madrugada colocando no papel o que talvez fossem as primeiras anotações sobre o drama pelo qual seria lembrado por gerações de leitores e entusiastas do teatro ídiche.

Em "O Dibuk" ocorre algo semelhante à cena testemunhada por An-Ski. Nissan e Sender são amigos e acabam prometendo um ao outro que os seus futuros filhos se casarão entre si. O tempo passa e os amigos se dispersam. Nissan acaba morrendo em outra cidadezinha sem que Sender fique sabendo que ele havia tido um filho, Khonen, que de tanto viajar para completar os estudos, acaba, sem saber, chegando ao vilarejo do amigo do pai.

Como era costume da época, para ajudar na manutenção dos estudantes, Khonen passa a fazer as suas refeições na casa de Sender, que agora é pai de uma jovem, Leah. Eles se apaixonam, mas Sender inadvertidamente costura o casamento da filha com um outro rapaz.

Ao receber a notícia, Khonen, que andava fazendo toda espécie de magia a subverter a cabala na tentativa de enriquecer e finalmente pedir a mão de Leah em casamento, tem uma síncope e morre.

Por sua vez, no dia do casamento, Leah visita o túmulo da mãe para lhe prestar uma homenagem, mas acaba evocando a presença do amado, cujo espírito sem repouso adere ao seu corpo, demandando a jovem para si.

A noiva então começa a apresentar sinais de que havia sido possuída e à medida que esses sinais se intensificam, fica ainda mais evidente a necessidade de se realizar um ritual de exorcismo; na esperança de libertar o seu corpo e, quem sabe, salvar a sua vida.

Os leitores que se interessam tanto pelo folclore, como pelo misticismo judaico encontrarão em "O Dibuk" uma rica fonte de informações sobre temas relacionados à cabala, além da descrição do próprio ritual de exorcismo, que em nada se assemelha ao que estamos acostumados a ver nos cinemas.

No entanto, para além do aspecto pitoresco, a figura do Dibuk na obra de An-Ski também pode ser interpretada como uma espécie de metáfora da experiência das populações judias da Europa Oriental que, naquela época, viviam, por assim dizer, entre dois mundos, tentando encontrar um ponto de equilíbrio entre o apelo da tradição e as imposições da modernidade.

O próprio An-Ski sentiu essa tensão na pele, pois ele foi, ao mesmo tempo, um revolucionário, havendo se envolvido com o movimento socialista e participado ativamente da vida política da época; bem como alguém profundamente interessado na preservação da cultura e no destino do seu povo.

Neste sentido, "O Dibuk" também é um documento que atesta o quão difícil é, para um escritor pertencente a uma minoria, a exemplo do próprio An-Ski e de tantos outros, habitar nesta tensão. No entanto, o sucesso da peça —que até hoje é encenada mundo afora— também deixa claro o seu apelo universal, mostrando que, apesar das dificuldades, vale a pena escrever sobre as questões que nos tocam mais diretamente.

Porque, afinal de contas, a literatura não deixa de ser uma maneira de se estabelecer uma ponte entre dois mundos, permitindo-nos, entre outras coisas, combater o preconceito.

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