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Milei e as eleições de outubro na Argentina

Ele se saiu bem pelo modo como disse certas coisas, não pelo que disse

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Diego M. Raus

Diretor da licenciatura em Ciência Política e Governo da Universidade Nacional de Lanús (Argentina) e professor da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires

Um estudo recente do Observatório da Dívida Social da Universidade Católica Argentina, um instituto que trabalha há mais de duas décadas com essa regressiva questão social e cujos resultados não diferem muito das estatísticas oficiais, publicou que, no país, 61% das crianças e adolescentes (entre 0 e 16 anos de idade) encontram-se abaixo da linha da pobreza. Que 59% dessa população infantil e adolescente recebem alimentação gratuita. Que a insegurança alimentar dessa população aumentou em 44% entre 2010 e 2022. E que 40% dessas crianças não têm acesso a água encanada em suas casas. Esse cenário de regressividade social encontra-se em um "increscendo" desde 2009, abrandando entre 2011 e 2012, para logo depois dar lugar a esse caminho para o precipício.

Se analisarmos as estatísticas, veremos um cenário em que, por mais de uma geração de argentinos e residentes no país, mais da metade da população viu suas condições de vida, suas expectativas para o futuro e, pior ainda, as expectativas de seus filhos diminuírem progressivamente.

Nesse cenário, como pode ser surpreendente a eleição de Javier Milei? Esperava-se que ele ficasse em terceiro lugar nas primárias abertas, atrás da principal oposição ao partido governista —Juntos por el Cambio— e da coalizão do governo —Unión por la Patria.Surpreendentemente, Milei, sem estrutura partidária ou elenco político conhecido, ficou em primeiro lugar, com 31% dos votos, seguido por JxC com 28,5% e UxP com 27%. Reitero, apenas com sua figura.

Para começar a entender esse resultado, é preciso observar o seguinte: Milei não venceu por causa do que disse, mas sim por como disse.

A campanha quase unipessoal de Milei, claramente inscrita no que ficou conhecido há alguns anos como as correntes libertárias, baseou-se em dois elementos: uma proposta de dolarização como forma de resolver a estrutural e crítica situação econômica do país e um repúdio à casta, simbolizando neste conceito toda a classe política argentina. Mas tudo isso foi dito em voz alta, com gestos de raiva, insultos e uma desqualificação absolutamente desdenhosa da política tradicional. Foi este "como" mais eficaz do que o "quê".

Javier Milei em campanha em La Plata, Buenos Aires - Agustin Marcarian/Reuters

Essa raiva e essa desqualificação interpretaram e convocaram para as urnas um setor da população que está tão indignado quanto ele. Que se enfurece de descontentamento por não conseguir resolver suas dificuldades cotidianas. Que está cansado de promessas, mas ainda mais de slogans vazios proferidos por partidos e políticos. Que se contorce diante de discursos políticos que parecem falar a si mesmos e àqueles que os produzem. Que já não acreditam mais. Definitivamente, não acreditam.

Será necessário analisar mais detalhadamente, mas ficou bastante claro após essas primárias que o voto em Milei veio especialmente de jovens de setores populares, dependentes da precária economia informal, habitantes de bairros abandonados com uma infraestrutura mais que deficiente e cercados por colegas, tão marginalizados, desiguais e carentes de esperança entre eles a ponto de configurar uma situação política fora da política representativa.

O mais que inesperado resultado das primárias de 14 de agosto, até mesmo para La Libertad Avanza, a estrutura política registrada por Milei para essas eleições, que comemorou o resultado de uma maneira consistente com a surpresa que causou, encontrou a oposição Juntos por el Cambio, que já estava se preparando para uma vitória retumbante, dividida e em má situação interna, fato que a catapultou para o segundo lugar, com pelo menos 10% a 15% menos votos do que o esperado (e previsto pelas pesquisas cada vez mais falhas).

O resultado também deixou em uma posição desfavorável, o partido governista -kirchnerista Unión por la Patria, que, embora não esperasse, salvo um milagre, vencer o Paso, também não esperava ficar em terceiro lugar —a ponto de não entrar na votação de outubro se essas posições se repetissem— ou obter uma porcentagem de votos claramente inferior à prevista pelas pesquisas.

Ficou, raro na política eleitoral argentina, um caminho para as eleições presidenciais de três terços. Mas três terços que se rechaçam mutuamente, dois dos quais não estão dispostos, como geralmente acontece nos sistemas eleitorais da região, a fazer certos acordos, a transferir preferências e votos para derrotar um deles. Os três terços destas Paso a caminho de outubro são inegociáveis, porque representam claramente três posturas diferentes e antagônicas das expectativas eleitorais dos argentinos.

O que é novo é o terço de Milei. Ele tem dois pontos fortes que lhe dariam, de acordo com os primeiros focus groups, mais vantagens em outubro se as perspectivas e expectativas atuais forem mantidas. O primeiro é o fato de ter vencido de forma surpreendente, o que significa um caminho aberto para seus eleitores, para os eleitores dos partidos que ficaram de fora em outubro e, acima de tudo, para aqueles que não votaram por causa do desencanto e do desgosto. O segundo é o fato de ter acertado em cheio e ter interpretado os setores sociais, repito, absolutamente enojados e insatisfeitos, a ponto de que grande parte deles não teriam ido votar se não tivessem a opção Milei.

Por isso, e que fique claro: Milei ganhou devido ao modo como disse certas coisas, mais do que pelas coisas que disse.

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