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Renata de Melo Rosa

A nova crise de segurança no Haiti

É preciso pensar na ideia de emergência na comunidade internacional

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Renata de Melo Rosa

Doutora em antropologia da América Latina e Caribe pela Universidade de Brasília, é diretora do Instituto Maria Quitéria e cofundadora da Iniciativa Brasil-Haiti. Realizou estudos de pós-doutorado na Université d’Ètat d’Haiti.

A mais recente aparição do Haiti nas manchetes internacionais reforça a ideia de caos e desordem absoluta de um país totalmente negro do Caribe. A Penitenciária Nacional Haitiana foi invadida, em um ataque atribuído à liderança de Barbecue, um ex-policial da PNH e líder da Gangue G9 an Fanmi e Alye, cujo resultado foi a libertação de mais de 3.000 detentos.

Antes de aderirmos às manchetes sensacionalistas e racistas da mídia internacional, é importante compreendermos a história política recente do Haiti, para a qual a comunidade internacional ainda não conseguiu elaborar nenhuma resposta: o magnicídio de Jovenel Moïse, em 7 de julho de 2021, foi um fato grave. Desde o assassinato de John Kennedy, em 22 de novembro de 1963, nenhum chefe de Estado em exercício havia sido assassinado nas Américas.

Até o momento, a opinião pública aguarda a divulgação dos mandantes do crime. Enquanto isso, um governo completamente ilegítimo liderado por Ariel Henry ocupa o poder no Haiti, sob fortes e ininterruptos protestos populares. Como é de praxe na política haitiana, Henry segue incólume e completamente alheio à absoluta indignação do povo haitiano quanto ao seu papel de usurpador político há mais de dois anos consecutivos.

Não adere a nenhum apelo, não apresenta nenhum plano de transição de governo, não retoma o processo eleitoral que estava em curso quando do assassinato de Jovenel Moïse e nada faz pelo país. Mostrou-se surpreso quando da aprovação da Resolução 2699, de outubro de 2023, na qual o Conselho de Segurança autorizou o envio de tropas quenianas ao país para controlar as gangues na capital, Port-au-Prince.

Jovenel Moïse e Martine Moise no Palácio Nacional, em Port-au-Prince, em 2018 - Hector Retamal/AFP

Uma leitura decolonial e antirracista

Uma leitura decolonial e antirracista do Haiti deve se pautar em uma análise aprofundada sobre os efeitos a longo prazo de uma Missão de Paz das Nações Unidas em países negros. Descolonizar e desracializar a paz implica estabelecer bases sólidas de análise e leitura de variáveis sensíveis que provocam a desestabilização de um país.

Um dos "êxitos" e talvez a única meta cumprida da Minustah (Missão das Nações Unidas para Estabilização do Haiti), de 2004 a 2017, liderada militarmente pelo Brasil, foi a recriação da PNH -Polícia Nacional Haitiana. Naquele contexto, era muito importante para a comunidade internacional e para as Nações Unidas construir uma estética de uma política que supostamente funcionasse: uniformes, carros, armas, equidade de gênero e treinamento para os direitos humanos.

No entanto, essa estética rapidamente colidiu com as condições estruturais a que os policiais estavam submetidos: com salários atrasados e trabalhando com fome, muitos abordavam motoristas nas ruas para que lhes pagassem um prato de comida. Muitos trabalhavam dias com fome. Essas condições de insegurança alimentar profunda e falta de salários pouco interessou à comunidade internacional, que acreditava que tais problemas ou não existiam de fato ou poderiam ser autogeridos.

A partir dessa crise profunda de estrutura, surgiu um movimento policial insurgente chamado 509 Fantom, que reivindicava o direito ao sindicalismo militar, por meio da insubordinação e da violência armada, um dos impactos mais visíveis dos efeitos pós-Minustah. Após anos de deterioração das condições de trabalho dos policiais, o grupo 509 Fantom, em maio de 2020, ainda na vigência do governo de Moïse, começou a protestar de forma violenta contra as instituições governamentais.

A crise se aprofundou com a prisão de vários líderes do movimento e com a proibição de os policiais reivindicarem seus direitos. A situação se deteriorou rapidamente em Delmas e Pétionville, com ataques violentos a estabelecimentos comerciais e tentativa de libertação de presos políticos.

A única resposta internacional a essa crise foi a classificação da embaixada americana em Port-au-Prince ao considerar o grupo 509 Fantom como uma organização terrorista. Após esse episódio, o governo de Moïse se aproximou de Barbecue para que pudesse controlar os policiais insurgentes fazendo crescer o poder político e de fogo do G9 Fanmi e Allie.

A ascensão da performance política de Barbecue (Jimmy Chérizier) começa então no governo de Moïse. No momento do magnicídio, as estruturas de poder de Barbecue se desmobilizam para, em seguida, se articularem com Martine Moïse, viúva de Jovenel Moïse, sobrevivente da tentativa de assassinato. A partir de então, as gangues se generalizaram na capital haitiana, nem todas sob o comando de Barbecue, que vinha perdendo poder político ao longo do ano de 2023 e, em especial, com a possibilidade de uma nova missão da ONU com forças quenianas.

O ataque de Barbecue à penitenciária foi uma tentativa extremamente arriscada de conseguir apoio político de prisioneiros libertos que supostamente deveriam, como retribuição à liberdade, aderir ao grupo de Barbecue. O Haiti vive uma revolução permanente, cujos mecanismos e gatilhos estão presentes em quase todos os países latino americanos e caribenhos: ausência de justiça social, insegurança alimentar, déficit de democracia e exclusão de todos os direitos básicos.

Lutar contra o racismo e promover a decolonização implica uma luta permanente pela existência e sobrevivência. No Haiti, essas contradições estão escancaradas. Controlar todos os grupos armados (os que estão sob a liderança de Barbecue e os que não estão) irá demandar muita habilidade política por parte da comunidade internacional.

Infelizmente, no Haiti, é preciso que as imagens do caos sejam produzidas e protagonizadas indefinidamente para que o espetáculo do sofrimento e da violência atinjam os níveis de estereotipia do racismo, do lugar que um país negro fora do continente africano ocupa no imaginário da comunidade internacional, para que as engrenagens da ajuda internacional sejam acionadas.

Como o senso de emergência é artificialmente construído, a "ajuda" também será oferecida nos moldes colonialistas e racistas: sem leitura do contexto, sem aprofundamento do debate político e das disputas de poder que organizam o Haiti e sem democracia.

Entre os países latino-americanos e caribenhos, o Haiti é um dos que mais produzem intelectuais de genialidade notável, como Jean Casimir, René Depestre, Edwidge Danticat, Sabine Manigat, René Depestre, Rosny Smarth, Raoul Peck, entre tantos e tantas centenas de intelectuais.

Reuni-los para debater as soluções possíveis para o Haiti do futuro seria o mínimo que a comunidade internacional poderia oferecer.

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