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Na crise da Guatemala, cada grupo está em sua própria trincheira

País centro-americano caiu em forma primitiva de política em que direitos de alguns são exigidos com sacrifício dos de outros

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Jahir Dabroy

Professor e pesquisador da Escola de Governo da Guatemala e doutor em administração pública e políticas públicas pelo Instituto Nacional de Administração Pública (Inap)

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A Guatemala vive uma situação de forte tensão que não se via há décadas —cenário criado por uma classe política tradicional que esticou a corda o máximo que pôde e parece estar prestes a arrebentá-la.

Houve vários eventos que levaram ao que acontece hoje no país hoje.

Manifestação exige renúncia da procuradora-geral, Consuelo Porras, e do promotor Rafael Curruchiche, na Cidade da Guatemala - Johan Ordonez - 14.set.23/AFP

Para começar, mediante disposições arbitrárias disfarçadas de legais, não tivemos renovação das cortes em quase quatro anos. Argumentos supérfluos, como discussões supostamente insuficientes no Congresso sobre os perfis de quem integraria o sistema de justiça, levaram ao enraizamento de uma classe política tradicional acostumada, desde a transição democrática em 1985, a fazer as coisas pelo suborno e pela corrupção e a ocupar posições-chave nos três poderes do Estado —o "pacto dos corruptos", como alguns chamam.

A isso se somou um Ministério Público que perseguiu qualquer voz que discordasse dessa aliança. O resultado foi um número significativo de pessoas, entre jornalistas, comunicadores, juízes, promotores e defensores de direitos humanos, ao exílio ou à prisão.

A razão parece ser uma espécie de pêndulo aprimorado do que a Cicig (Comissão Internacional Contra a Impunidade) fez até 2019 —uma perseguição com substância, mas sem muitas formas, a alguns atores do status quo. Atualmente há alta polarização social, com sentimentos de classe muito confusos entre o que entendem, sem análises muito sólidas, como esquerda e direita, e que são usados para justificar ações e discursos de um lado ou de outro.

Também devemos nos lembrar de como chegamos ao início de 2023. No começo do ano, houve um grande questionamento das autoridades eleitorais —em específico os magistrados plenos do TSE (Tribunal Superior Eleitoral)— por causa de uma série de interpretações particulares das leis eleitorais que implicou na suspensão de candidatos.

Esse foi o caso do Movimento de Libertação dos Povos, por exemplo, por supostamente não registrar a indenização correspondente de seu candidato a vice-presidente, Jordán Rodas, por ter sido Procurador dos Direitos Humanos e por ter tido, a partir desse cargo, uma relação pouco próxima com a classe política tradicional do país.

Há também o caso do partido Prosperidade Cidadã, que ninguém tinha no radar até a sigla liderar a primeira pesquisa séria do país, provavelmente por seu bom manejo das redes sociais e pela proximidade que demonstrou com o povo.

Embora seu candidato presidencial, Carlos Pineda, não fosse necessariamente muito diferente em termos ideológicos, não era um personagem fácil de controlar para essa classe política que estamos abordando —como resultado, surge uma denúncia de que a assembleia do partido que escolheu o político para disputar a Presidência não havia sido realizada de acordo com a lei e, portanto, todas as suas demais assembleias teriam de ser anuladas.

No total, 1.351 candidatos não puderam participar de diferentes cargos eletivos e Pineda, que liderava as pesquisas, saiu do processo eleitoral. Vale ressaltar que foi Manuel Baldizón, ex-candidato presidencial condenado nos Estados Unidos por lavagem de dinheiro libertado em 2022, quem apresentou a denúncia.

Há outros casos, como o de suspender a participação de Roberto Arzú, filho do ex-presidente Álvaro Arzú, que foi acusado de campanha antecipada —algo que praticamente todos os candidatos fizeram no último ano, disfarçando os atos de campanhas de filiação e distorcendo a Lei Eleitoral e de Partidos Políticos. Tudo isso foi somando pontos de conflito e dificuldades para enfrentar o processo eleitoral que começou em janeiro de 2023, com a convocação de eleições.

Apesar de tudo, 60,08% dos guatemaltecos decidiram votar em 25 de junho, com vários candidatos fora do menu político que nos foi apresentado. Discursos da classe política tradicional amparados em um falso cristianismo (cristãos verdadeiros não roubam), foram apresentados como opções para manter uma linha conservadora no país, sem sustento ideológico além do marketing não de um projeto político, mas de uma figura.

O resultado foi que, nas eleições presidenciais, o primeiro lugar ficou com o voto nulo, com 17,38% —o que comprova a rejeição à maioria dos políticos tradicionais do país. Em seguida, apareceram Sandra Torres (15,86%), da Unidade Nacional de Esperança (partido que originalmente era social-democrata e hoje é só mais um catch all party com a maior estrutura partidária a nível nacional), e Bernardo Arévalo (11,77%), do Movimiento Semilla (um partido progressista de centro-esquerda que não estava no radar de analistas e políticos).

A partir desse momento, começaram a questionar os resultados eleitorais. Bernardo Arévalo era um personagem incômodo, pois pertence a um partido pequeno e novo, que tentou ser diferente do resto dos políticos tradicionais. Em alguns aspectos, foi bem-sucedido, em outros nem tanto —mas obviamente não faz parte do eixo de partidos políticos tradicionais.

No segundo turno, confirmou-se a vitória de Arévalo (58,01%) sobre Torres (37,24%), o que gerou uma série de ações por parte do Ministério Público para tentar desacreditar o processo eleitoral. A situação chegou ao ponto de não retorno em 1º de outubro, quando retiraram do TSE as atas que continham o trabalho dos órgãos eleitorais temporários. Essas entidades são formadas por cidadãos respeitáveis e voluntários de diferentes departamentos e municípios do país que participam de um processo no qual os votos são contados de maneira pública diante de fiscais dos partidos políticos.

O que se mencionou foi a existência de um plano das autoridades do atual governo, em coordenação com os outros dois poderes do Estado e uma Corte Constitucional bastante afim, para anular o processo eleitoral e repeti-lo com candidatos que gerem simpatia à classe política tradicional, cancelando o Movimento Semente por uma investigação por assinaturas falsas entre seus filiados para se constituir como um partido (ironicamente denunciado pelo próprio Bernardo Arévalo).

Isso levou a uma série de bloqueios nas estradas a partir do último dia 2. Originalmente, os protestos foram iniciados pela organização indígena 48 Cantones de Totonicapán, que exigiam a destituição da atual procuradora-geral Consuelo Porras, e do Fiscal Especial Contra a Impunidade (FECI), Rafael Curruchiche. Com o passar dos dias, diferentes atores e setores se uniram em todo o país. Foram contabilizados mais de 190 bloqueios, e deve-se observar que não houve casos conhecidos de repressão por parte das forças de segurança.

Entretanto, está claro que há uma falta de liderança por parte do presidente Alejandro Giammattei para tentar buscar mecanismos imediatos de resolução do conflito. Foram necessários quase oito dias para que ele aparecesse em uma mensagem em cadeia nacional, na qual falou sobre o que inevitavelmente aconteceria —saques cometidos por infiltrados, abuso de bloqueios para limitar o direito constitucional de livre circulação, escassez de produtos e o iminente aumento de preços, entre outros.

O governo central solicitou a participação da OEA (Organização dos Estados Americanos) para tentar um acordo entre as partes cinco dias depois. Apesar da alta qualidade das pessoas enviadas, o que se observa é que não há clareza sobre com quem negociar. 48 Cantones não é o líder nacional dos bloqueios, pois muitos deles surgem de forma espontânea e com apoio popular. Por outro lado, a petição inicial de renúncia da procuradora-geral nem sequer foi mencionada pelo presidente Giammattei, e ela mesma disse que não deixará o cargo.

Como observou o internacionalista guatemalteco Roberto Wagner, cada grupo está em sua própria trincheira e não quer sair dela, sem disposição para negociar. Soma-se a isso um presidente eleito, Arévalo, que não dá sinais de que vai convocar um diálogo imediato e liderar uma transição mais ordenada, considerando que os bloqueios afetam o país em última instância e demonstram a forma primitiva de política em que a Guatemala caiu, em que os direitos de alguns são exigidos com o sacrifício dos de outros.

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