Laura Mattos

Jornalista e mestre pela USP, é autora de 'Herói Mutilado – Roque Santeiro e os Bastidores da Censura à TV na Ditadura'.

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Você acha mais importante a escola dar aula de matemática ou de empatia?

Com a pandemia e novas exigências curriculares, colégios particulares compram programas para ajudar os alunos a desenvolver habilidades socioemocionais

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Foram mais de 500 mortos, entre os quais 300 crianças, no pior incêndio do Brasil. Logo depois da tragédia, em um circo de Niterói, em 1961, um homem do interior de São Paulo mudou-se para lá e, onde havia cinzas, fez um jardim e passou a distribuir flores e mensagens de afeto às famílias das vítimas e a toda a população traumatizada.

A história inspiradora de José Datrino (1917-1996), o Profeta Gentileza, que, depois de Niterói, fez o mesmo em ruas do Rio por mais de duas décadas, foi recentemente contada a alunos do 4º ano de uma escola de Guarulhos, convidados a refletir sobre a importância de ser gentil com os outros e consigo. A partir disso, a turma produziu um vídeo encenando situações em que a gentileza faz a diferença. Em uma delas, uma menina representa dois papéis, o de uma aluna, triste por ter ficado de recuperação, e o de sua mãe, que fala: "Meu amor, sabia que já fiquei de recuperação? Então eu disse: ‘Eu consigo!’ Estudei dia e noite, e passei de ano. Você vai conseguir também!"

Estudantes do colégio Mater Amabilis, de Guarulhos, com material didático sobre emoções, em aula de aprendizado socioemocional, do Programa Semente; escolas particulares estão investindo em sistemas que desenvolvam habilidades socioemocionais dos alunos. - Divulgação

A atividade foi dada em uma aula do Programa Semente, metodologia de aprendizagem socioemocional que começou a ser implantada em escolas em 2017.

Dentre os colégios particulares, cresceu nos últimos anos a procura por sistemas que desenvolvam habilidades como foco, empatia e persistência. Essas competências ganharam relevância na educação com a constatação de que haviam se tornado uma exigência do mercado de trabalho no mundo moderno. A partir de 2020, trabalhar com esses aspectos tornou-se uma obrigação de todas as escolas brasileiras, tanto quanto ensinar matemática, português ou qualquer conteúdo tradicional.

A nova orientação consta da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), documento com diretrizes pedagógicas elaborado entre 2015 e 2018, em conjunto pelo Ministério da Educação, por governos estaduais, municipais e por representantes da sociedade civil.

Os educadores mal haviam começado a elaborar projetos para isso quando veio a pandemia e levou o planejamento escolar por água abaixo. O fechamento das escolas, no entanto, com todos os prejuízos que causou ao aprendizado e à saúde mental, evidenciou o quão vital é aprender, por exemplo, a ser resiliente, ter foco, lidar com a frustração, controlar o medo e a ansiedade e a recuperar o entusiasmo.

Estudantes de escola municipal de Campanha, em Minas Gerais, em atividade do Programa Semente; adoção de metodologias para o desenvolvimento socioemocional ainda são raras em escolas públicas - Divulgação


"Em uma situação como a da pandemia, será que a escola deve se preocupar com a matemática que o aluno não está aprendendo, quando ele está com o pai internado?", questiona Eduardo Calbucci, professor há quase 30 anos, doutor em linguística pela USP, fundador e CEO do Programa Semente. Ele teve a ideia de criar a metodologia, em parceria com o psiquiatra e também educador Celso Lopes de Souza, porque percebeu, ao longo dos anos na educação, a importância dos aspectos socioemocionais. "Quando encontramos ex-alunos, a recordação que nos trazem é sempre emocional. Ninguém fala: ‘Aquela aula de vírgula entre períodos compostos foi inesquecível’. Eles se recordam de uma conversa, de uma frase que os influenciou."


Os professores, em geral, têm essa consciência, e muitos tentam ajudar os estudantes de forma intuitiva, até com algumas atividades em aula. Mas lhes faltam ferramentas e conhecimento para trabalhar as habilidades socioemocionais de uma maneira mais assertiva, dentro de um projeto que envolva toda a escola e com respaldo científico.

A BNCC tornou-se um norte, mas não traz orientações detalhadas sobre como as escolas devem atuar. Muitas estão perdidas e dizem cumprir as novas exigências com atividades extracurriculares que já ofereciam antes, como robótica, artes e esportes. Todas elas, claro, podem fazer parte de um projeto de aprendizagem socioemocional, mas, por si só, não garantem que os alunos aprimorem essas competências.

Os pais devem averiguar se a escola fez apenas uma "maquiagem" no currículo ou se, de fato, está se reestruturando para que todo o projeto pedagógico traga esse novo conceito chamado de alfabetização socioemocional, com o respaldo de pesquisas. Mesmo famílias e escolas "conteudistas", que priorizam o conteúdo cobrado por provas, devem entender que aula de empatia é tão importante quanto de matemática. As habilidades socioemocionais, inclusive, servem não "só" para que o aluno se sinta melhor e se prepare para o futuro; elas fazem toda a diferença no rendimento escolar.

Calbucci dá um exemplo disso: "Vamos supor que um aluno comece uma prova e não saiba responder à primeira pergunta, nem à segunda", diz. "Se, nesse momento, ele pensar ‘Não sei nada’, a chance de ir mal é grande", afirma. "Mas ele pode pensar: ‘Dei azar, não sei as duas primeiras, mas ainda tenho mais oito questões pela frente’."

Levar o aluno a essa postura mental, que aumenta a probabilidade de tirar uma boa nota, é uma construção de longo prazo, e há métodos para isso. Os professores precisam passar por formação, e o trabalho deve ser interdisciplinar e, de preferência, contar com o suporte de material didático específico, inclusive audiovisual.

Desenvolver um projeto assim não é simples para as escolas, e acaba se tornando mais viável para aquelas que têm maior estrutura. Por isso, as de menor porte têm buscado programas prontos, que vendem um pacote que inclui formação de professores, material didático, plataforma digital e consultoria na aplicação da metodologia.

Além do Semente, iniciativa independente de educadores brasileiros, presente em cem escolas, há programas de grandes grupos de educação. Um deles, adotado por 500 colégios, é o Liv (Laboratório Inteligência de Vida), do Eleva, que tem como acionista Jorge Paulo Lemann, dono de uma das maiores fortunas do mundo. O Líder em Mim, utilizado por 530 escolas, é da Somos Educação, que detém o sistema Anglo e editoras como Saraiva, Ática e Scipione. A metodologia é norte-americana, inspirada no best-seller "Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficazes", de Stephen R. Covey.

​Também autor de best-sellers, o psiquiatra brasileiro Augusto Cury tem seu programa de educação socioemocional, a Escola da Inteligência, em mais de mil estabelecimentos de ensino. Baseia-se na teoria da inteligência multifocal, criada pelo escritor, que já vendeu mais de 25 milhões de exemplares de seus livros de autoajuda.

O custo desses programas costuma variar de R$ 200 a R$ 300 por ano, por aluno. Fora desse universo estão as escolas públicas, que dependem da aprovação de verba de prefeituras ou governos de Estado. Há alguns projetos voluntários, normalmente centrados na formação de professores, a exemplo do Volta ao Novo, do Ayrton Senna.

O Semente tem somente uma prefeitura parceira, a de Campanha (MG), e Calbucci conta que, com a Covid, foram interrompidos processos de licitação para a aquisição desses programas para escolas públicas. A esperança é que, por outro lado, a pandemia tenha sensibilizado os gestores para a importância de se investir em educação socioemocional. E que, das cinzas, possa então brotar a gentileza.

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