Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo

As funções do sono e uma de suas disfunções

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Qual teria sido o marco evolutivo que deu vantagem aos animais que dormem? Dormir deixa qualquer ser vulnerável, e mesmo assim os dorminhocos prevaleceram. Não haveria uma forma alternativa de descanso que permitiria um certo alerta mais protetor? 

Alguns pesquisadores do sono dizem que não, e para eles dormir é mais seguro do que estar acordado. Postulam que a busca por alimentos e por reprodução são atividades que expõem mais a riscos, incluindo o de ser detectado por algum predador.

E se a questão é sobrevivência, o sono é vital. Impedir que ele ocorra causa a morte em semanas porque, quando se dorme, mecanismos biológicos atuam para manter o equilíbrio necessário para a vida —ou seja, a função de dormir não é restrita a revigorar.

Adormecer não é um estado de quietude cerebral e não é o antônimo de estar acordado, mas é uma sucessão de especiais atividades encefálicas controladas por mecanismos precisos e complexos. Algumas dessas atividades produzem sonhos, cuja maioria nem será recordada. Por isso faço outra pergunta: se quase não nos lembramos dos sonhos, por que sonhamos?

Homem fecha os olhos como se fosse dormir no meio da av. Paulista
Narcolepsia faz a pessoa dormir repentinamente várias vezes ao dia - Julio Bittecourt/Folhapress

O cérebro quando dorme ou sonha tem suas conexões neuronais revisadas, o que consolida certas memórias e apaga outras. Durante esse especial período ocorrem também regulagens hormonais e imunológicas, que respectivamente, atuam contra a obesidade e combatem às infecções. Foi descoberto que durante o sono o líquido que banha o cérebro, o líquor, tem seu fluxo modificado com a finalidade de mover os restos metabólicos para serem depurados. Esse movimento também distribui melhor os nutrientes entre diferentes regiões encefálicas. Se o sono rotineiro não durar o suficiente, pode ocorrer acúmulo desses detritos no cérebro, uma das possíveis bases para o surgimento da demência de Alzheimer.

Gelineu, um homem de 53 anos, leu em algum lugar sobre a relação entre doença de Alzheimer e problemas de sono. Tinha motivos para se preocupar e, aflito, foi procurar um neurologista. Em consulta, relatou que há décadas era abruptamente tomado por uma sonolência irresistível e cedia a essa necessidade mesmo em locais inapropriados. Após o descanso, acordava revigorado, mas a sonolência acontecia mais vezes ao longo do dia. Tinha outra queixa: tombos. Ele caía de forma desajeitada quando ria, assustava-se ou passava raiva. Tudo isso o constrangia. À noite, momento ideal para o pleno repouso, o sono não fluía continuamente. Acontecia com interrupções, acompanhado de pesadelos e alucinações.

Ao ouvir essa história o neurologista suspeitou de narcolepsia como diagnóstico. A doença rara é marcada por causar sonolência diurna, catalepsia (as quedas), alucinações noturnas, sono entrecortado e pesadelos. As más noites de sono afetavam negativamente a sua memória. Com esse distúrbio grave, ele não conseguia ter boa memória, mas não sofria de nenhuma forma de demência.

Como Gelineu, muitas pessoas com essa doença recebem o diagnóstico muito tarde em sua vida. O problema foi bem exemplificado por Chakravorty, que descreveu o caso de um soldado que não conseguia manter-se acordado para combater na batalha do Bulge durante a Segunda Guerra Mundial. O veterano teve o diagnóstico de narcolepsia apenas em sua velhice.

Se ele tivesse alegado sua condição de sonolência quando recruta, provavelmente não teria recebido a avaliação que merecia e teria sido rotulado como preguiçoso. Fosse ele portador de um insignificante sopro cardíaco, poderia até ter sido dispensado da guerra. No entanto, as moléstias do sono são negligenciadas, e doenças que não têm causas evidentes frequentemente recebem rótulos pejorativos. O pior ainda é saber que a necessidade de repouso por vezes é mal vista.

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