Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

O autismo, o hiperfoco e a lua de queijo

Pensava-se que a grande maioria dos autistas possuía deficiência intelectual

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O psiquiatra suíço Eugen Bleuler (1857-1939) cunhou termo esquizofrenia, e fez mais como pioneiro: foi o primeiro a usar a palavra autismo quando assim nomeou um grupo de sintomas comuns aos esquizofrênicos: distanciamento, solidão e inabilidade social.

Porém o autismo foi reconhecido como uma doença à parte após Bleuler, quando os cientistas Leo Kanner (1894-1981) e Hans Asperger (1906-1980), que trabalhavam sem se influenciarem, fizeram descrições semelhantes de casos clínicos.

Quase simultaneamente, os dois deram o mesmo nome para o distúrbio que estudavam. Até então, crianças autistas não recebiam um diagnóstico adequado, sobravam-lhe o rótulo de terem retardo mental ou qualquer distúrbio de comportamento.

Coração composto por peças de quebra-cabeças coloridos
Bikki por Pixabay

"Ele parece estar encolhido em sua própria concha, a viver dentro de si mesmo, alheio a tudo". Esta foi a descrição precisa de um pai acerca da condição de seu filho, um dos pacientes do Dr. Kanner, uma síntese que muito bem cabia às demais crianças estudadas.

O menino vivia a empilhar objetos, mantinha o costume de chacoalhar sua cabeça de um lado a outro, demonstrava intensa aversão às mudanças e apego à rotina rigorosamente repetitiva. Todos esses hábitos foram reconhecidos como sintomas cardinais de autismo. Alguns dos casos clínicos possuíam criatividade para um específico assunto, uma ilhota de inventividade.

O psiquiatra e pediatra Hans Asperger identificou diferentes cursos de autismo, as manifestações compunham um mosaico de possibilidades. Algumas pessoas possuíam surpreendentes habilidades intelectuais, como Elfried Jelinek, uma de suas pacientes, que receberia o prêmio Nobel de literatura em 2004.

Até há alguns anos, dizia-se ter síndrome de Asperger aqueles capazes de façanhas cognitivas, porém com dificuldade em interações sociais, e problemas na compreensão de comunicação não literal, como as que acompanham brincadeiras, gestos, olhares e expressões faciais. Atualmente preferimos o diagnóstico de transtorno do espectro autista, distúrbio complexo e heterogêneo do desenvolvimento neurológico.

Pensava-se que a grande maioria dos autistas possuía deficiência intelectual, mas de fato, 50% ou menos têm. Para se referir aos indivíduos com escores de quociente de inteligência igual ou superior a 70 pontos, a medicina, por um tempo, utilizou as palavras "transtorno do espectro autista de alto funcionamento".

A intenção implícita era fazer referências aos pacientes sem deficiência intelectual grave. Mas com o tempo, o termo alto funcionamento reforçou a ideia de que o autismo trazia grandes vantagens para a vida. Um contraste à realidade nada romântica, muitos indivíduos de "alto funcionamento" vivem em isolamento, desempregados e permanentemente dependentes de terceiros.

Há, no entanto, autistas que conseguem estabelecer e manter sólidas relações sociais, também conquistam grande autonomia. Neste grupo há quem possui memória excepcional, ou QI elevado, ou vocabulário descomunal, ou outra habilidade cognitiva surpreendente como ser capaz de manter hiperfoco.

Hiperfoco é um estado mental em que há absorção completa de uma tarefa por uma pessoa, que está desligada de todo o resto. Portanto, qualquer saliência não condizente com a atividade é ignorada.

Qualquer um pode experimentar o momento de hiperfoco, geralmente durante atividades prazerosas, como, por exemplo, durante jogos de videogame, ou num especial momento esportivo. Porém, erroneamente, supõe-se que este estado é peculiaridade única de não típicos. Se acontecer no trabalho, o hiperfoco determinará ganhos produtivos que poderão ser admirados e invejados.

A frase o "autismo está bombando" surgiu em uma outra coluna desta Folha de S.Paulo. Se alguém realmente leva a sério esse significado, provavelmente assim o faz para se escusar da própria incompetência ou mediocridade.

Com o trunfo de ter o desenvolvimento neural típico, insinua que quem lhe supera só assim o faz por ser atípico. Também desconsidera todo o entorno cheio de inconvenientes causados pelo autismo. Ou não é nada disso, apenas um livre e frívolo julgamento, tal qual acreditar que a lua é de queijo. Um pensamento fantasioso, mas permitido.

Fantasiosa também foi a teoria do pediatra D.W. Winnicott (1896-1971), que, baseada em nada, culpava as mães pelo autismo dos filhos. Em sua teoria, a mãe incapaz de atender às necessidades específicas de cada período do amadurecimento do bebê, obriga-o a organizar-se defensivamente. O autismo seria esta defesa, de fazer-se invulnerável à agonia causada pela incompetência materna, isolando-se dentro de si.

Você, meu caro e possivelmente leigo leitor, com um pingo de crítica, será capaz de contradizer por si só as besteiras entremeadas a esta tese. Caso prefira, há uma vasta quantidade de trabalhos sérios que desmentem Winnicott. Os encontrará facilmente, deixo esta tarefa em suas mãos.

Somente o otimismo como virtude cívica acata o pretenso pediatra: acreditar que é possível descobrir a gênese do autismo, por meio de uma ilação superficial disfarçada em retórica rebuscada. A teoria de Winnicott até parece sofisticada, mas o alicerce mental que a escora é o mesmo que faz alguém acreditar que a lua é de queijo.


Referências:

1. Kandel ER. "The Disordered Mind : What Unusual Brains Tell us About Ourselves". Farrar, Straus and Giroux,; 2018.

2. Baumer N, Spence SJ. "Evaluation and Management of the Child With Autism Spectrum Disorder. Contin Lifelong Learn Neurol". 2018 Feb;24(1):248.

3. Alvares GA, Bebbington K, Cleary D, Evans K, Glasson EJ, Maybery MT, et al. "The misnomer of ‘high functioning autism’: Intelligence is an imprecise predictor of functional abilities at diagnosis". Autism. 2020 Jan 1;24(1):221–32.

4. Lincoln AJ, Courchesne E, Kilman BA, Elmasian R, Allen M. "A Study of Intellectual Abilities in High-Functioning People with Autism". J Autism Dev Disord. 1988 Dec 1;18(4):505–24.

5. Ashinoff BK, Abu-Akel A. "Hyperfocus: The Forgotten Frontier of Attention". Psychol Res. 2021 Feb;85(1):1–19.

6. Araujo CAS de. "Winnicott e a Etiologia do Autismo: Considerações Acerca da Condição Emocional da Mãe". Estilos Clin. 2003 Jun;8(14):146–63.

7. Opinião - Luiz Felipe Pondé: "O Diagnóstico de Autismo se Transformou numa Tendência de Estilo Hype" [Internet]. Folha de S.Paulo. 2022 [cited 2022 Sep 3]. Available from: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2022/08/o-diagnostico-de-autismo-se-transformou-numa-tendencia-de-estilo-hype.shtml

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