Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Mente

Os gênios e os loucos, o mestre do xadrez

Ímpetos criativos surgem quando há tensão ou assincronia entre os fatores que fundamentam o comportamento humano

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Gênio louco, duas palavras frequentemente combinadas para nomear uma raridade, as pessoas que alcançam a eminência, mas vivem uma realidade excêntrica. Van Gogh, Allan Poe, Santos Dumont são exemplos de mentes criativas ao passo que atormentadas, cujas biografias vigoram a mítica acerca da genialidade untada à loucura. Mas, de fato, dentro de certas cabeças, existe uma via comum que serve às grandes habilidades e à loucura?

Um dos esforços pioneiros para atender a esta questão veio da psiquiatra Nancy Andreasen, atualmente da Universidade de Iowa. Ela entrevistou 30 escritores e 30 pessoas comuns, para concluir: os escritores realmente eram mais criativos e sofriam mais de transtornos afetivos, como depressão, mas principalmente bipolaridade.

O enxadrista norte-americano Bobby Fischer em uma entrevista coletiva em Buenos Aires (ARG)
O enxadrista norte-americano Bobby Fischer em uma entrevista coletiva em Buenos Aires (ARG) - Zoraida Diaz/Reuters

Ímpetos criativos surgem quando há tensão ou assincronia entre os fatores que fundamentam o comportamento humano, seria uma boa explicação, não fosse uma grande simplificação e uma generalização. As conclusões da psiquiatra não devem ser estendidas aos artistas de outras artes, cientistas e pessoas criativas das práticas cotidianas, pois ela dedicou-se apenas aos escritores.

Outra extrapolação a evitar: a comprovação obtida pela dra. Andreasen não nos autoriza a afirmar que pessoas com doenças mentais escrevem melhor, ou ainda, que são mais inventivas. Alta criatividade e doença mental grave excepcionalmente estão interpostas, e apenas em circunstâncias bem específicas, tão infrequentes que a ciência não as alcança com facilidade.

No mais, depressão e transtorno bipolar, embora anuviem a percepção do que é real, não são exatamente sinônimos de loucura. Portanto, se desejamos analisar a autenticidade da conexão desta com a genialidade, vamos à esquizofrenia, doença mental que faz romper o contato com a realidade. Esquizofrênicos vivem em um mundo imaginário, fantástico, um extremo do pensamento divergente.

Ora, o pensamento divergente é definido como a habilidade de gerar múltiplas ideias, a partir de diferentes perspectivas. É um ingrediente da criatividade, logo, seria a esquizofrenia uma alavanca para a criação?

Bom lembrar que a natureza bizarra das experiências esquizofrênicas está longe de ser original. Se esquizofrênicos têm uma ou outra característica que favorece o pensamento divergente, possuem também severas desvantagens cognitivas que sufocam a imaginação produtiva.

Mas outras doenças que dividem semelhanças à esquizofrenia, porém menos impactantes, causam ganhos criativos. Vamos ao exemplo de Bobby Fischer, para alguns o maior enxadrista de todos os tempos.

O norte-americano James Robert "Bobby" Fischer teve uma vida fantástica. Em 1958, com apenas 14 anos, tornou-se o mais jovem campeão de xadrez de seu país, em competição que venceu mais sete vezes, todas as que disputou. Em 1972 bateu o soviético Boris Spassky, em partida ambientada na Guerra Fria, tornando-se campeão mundial, título que abdicou em 1975. Então, aos 31 anos no auge de sua carreira, Fisher desapareceu do público.

A saúde mental do grande mestre nunca foi normal. Quando criança, apenas o xadrez lhe interessava, não tolerava as derrotas e seus professores o descreviam como antissocial, comportamentos compatíveis com transtorno de espectro autista. Porém, na medida em que ele crescia e desenvolvia mais e mais suas capacidades esportivas, outras atitudes passaram a compor o complexo cenário de sua existência.

Fisher fazia exigências extravagantes para jogar, e abandonava torneios intempestivamente. Reclamava de que seus opositores tentavam envenená-lo, insistia a dizer haver escutas nos hotéis em que se hospedava, assim como temia alguma bomba soviética durante suas viagens aéreas. No final de sua vida, dizia ser vítima de uma conspiração judaica internacional. Sintomas cardinais de transtorno delirante persistente.

Mesmo sofrendo de franco delírio persecutório, Fisher jogou em alto nível, inventou uma modalidade de competição, o xadrez960 e criou a versão atual do relógio que fica ao lado dos tabuleiros. Era brilhante, criativo e muito inteligente. Seria Bobby Fischer o protótipo do gênio louco, o arquétipo do delirante que também tem a dádiva da clarividência?

Estes gênios extravagantes não são estereótipos de nada, são únicos, nada típicos. É possível que existisse uma via cerebral em Bobby Fischer que dava sua mente a ambos, à grande competência no xadrez, e aos seus pensamentos perturbadores. Porém o enxadrista, quando a frente de seus oponentes, conseguia que esta peculiaridade funcionasse apenas de uma forma, a favor de suas vitórias.

Ele dizia que cada partida demandava sua total atenção e quase cem por cento de toda sua energia mental, nestas condições não se perdia em delírio. Ou não era nada disso, alternativamente ele poderia ser um gênio a despeito de sua doença mental.

De forma alguma quero romantizar as doenças mentais, condições que não trazem clarividências. E se tratadas, a redução da criatividade não será uma consequência. E não esperem coerência de alguns grandes talentosos.


Referências:

1. Kaufman SB, Paul ES. Creativity and schizophrenia spectrum disorders across the arts and sciences. Front Psychol. 2014 Nov 3;5:1145.

2. Acar S, Chen X, Cayirdag N. Schizophrenia and creativity: A meta-analytic review. Schizophr Res. 2018 May 1;195:23–31.

3. Fernandez-Egea E, Robbins TW. Bobby Fischer and the delusions of a king of logic. Brain. 2022 May 1;145(5):1570–3.

4. Andreasen NC. Creativity and mental illness: prevalence rates in writers and their first-degree relatives. Am J Psychiatry. 1987 Oct;144(10):1288–92.

5. Simonton DK. Creativity and psychopathology: the tenacious mad-genius controversy updated. Curr Opin Behav Sci. 2019 Jun 1;27:17–21.

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