Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé
Descrição de chapéu Rússia jornalismo

Ninguém é preconceituoso por desinformação, mas, sim, porque gosta

A pós-modernidade, na segunda metade do século 20, trouxe a ideia de que tudo é narrativa e de que não existe verdade

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Na segunda metade do século 20, a filosofia apresentava ao mundo das ideias uma teoria segundo a qual a era do cansaço com longas narrativas tinha chegado. A pós-modernidade chegara e, com ela a morte das utopias modernas de racionalidade universal em favor do bem e da verdade.

Sim, a modernidade nos entregou avanços técnicos e científicos, mas falhou em nos entregar a verdade última universal acerca das coisas e do mundo. Uma festa nos setores ditos progressistas —esse termo marketeiro— do pensamento acadêmico e jornalístico. A liberdade definitiva chegou, já que os poderosos não detinham mais o monopólio da verdade. Se episteme —conhecimento— é poder, logo, a verdade é sempre política, logo, quem tem poder detém a verdade. Lindo, não?

Título: A deusa desinformação A ilustração figurativa de Ricardo Cammarota foi executada em técnica manual, com caneta nanquim ponta fina em papel branco sobre cores chapadas laranjas aplicadas digitalmente em partes da imagem. Na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, trata-se de várias imagens, em linhas de contornos finos com desenho bem estilizado, traços simples e soltos - formando uma composição sem narrativa linear: ao fundo, da esquerda para a direita, mostram três figuras - uma com um balde na cabeça e outro, nos pés / um corpo humano em pé, do joelho para cima, dentro de uma uma caixa que esconde o resto do corpo, apenas com dois buracos, onde saem seus dois braços / um outro corpo humano em pé segurando uma grande gaiola, onde metade dele está dentro da mesma / uma figura humana maior, à direita, tem uma caixa de papelão na sua cabeça até a cintura. A figura está com um dos braços estendido, com um celular na mão, apontando para o chão em direção a um livro aberto.
Ricardo Cammarota/Folhapress

A partir daí, até vagabundos passam a usar a expressão "quem detém a narrativa vence". Enquanto na academia professores alienados da realidade —como quase sempre— ainda cantavam vitória devido à "morte" da verdade, e jornalistas brincavam com a era da pós-verdade, no mundo real, a direita, sempre feia, tomou para si o trunfo pós-moderno via redes sociais. Com essa mídia por excelência pós-moderna, foi à forra.

Instâncias jurídicas começaram a ficar com medo dessa pós-modernidade à mão de todos e decretaram guerra às fake news. Mas o conceito de fake news pressupõe que exista algo de factual que não seja, ele mesmo, falso. Algo de resistente a mentira como uma rocha resiste ao vento.

O jornalismo profissional depende para sua legitimidade que não seja reduzido a simples narrativa —apesar de os professores dos jornalistas na faculdade brincarem com essa ideia quando se trata de combater os "males" da sociedade—, caso contrário, para que irmos até a mídia profissional se tudo é narrativa? Que cada um escolha a sua e produza a sua. A população comum já tomou para si a boa nova pós-moderna. Esta hoje já não é filosofia, é senso comum de bêbado.

O público em geral já assimilou a ideia que tudo é narrativa —portanto, não existe verdade em lugar nenhum– e suspeita que os jornalistas servem a seus patrões, por isso comentários sempre trazem essa suspeita quando o seguidor não concorda com o autor do artigo. Os profissionais teriam "preferências" que deixam à vista para aqueles movidos pela certeza de que tudo não passa de narrativa.

Se X disse algo, é verdade. Se Y disse a mesma coisa, já não é verdade. Se afirmar que tudo é socialmente construído vale para defender X, ok. Se a mesma afirmação for feita para defender Y, já não vale. Você acha que o preconceito contra X será superado por um conjunto de conteúdo aparentemente consistente? Essa crença trai sua ingenuidade ou má-fé. Ninguém adere a preconceitos por conta de desinformação, adere porque gosta. Banal assim. Suspeito que uma porcentagem ínfima supere o preconceito contra Y por conta de informação aparentemente consistente. Neste caso, já não era preconceito.

Interessante observar que essa "descoberta pós-moderna" pode se desdobrar em afetos bem distintos. Por um lado, ela pode produzir paixões avassaladoras por certas crenças —como no caso da crença na moda de crítica ao colonialismo, por conta da guerra no Oriente Médio. Toda narrativa com a qual você não concorda poderá ser lançada ao esgoto da crítica pós-colonial. Já o vídeo ou a foto que lhe apetece, terá a solidez de um dado da mecânica de Newton.

Por outro lado, a boa nova pós-moderna poderá fazer de você um cínico que parece crer que o cinismo —"cinismo" no sentido do senso comum, que inteligentinhos de plantão não me venham com o filósofo antigo cínico Diógenes e seu barril— não tornará o ar que você respira insalubre.

Desde a pandemia já estouraram duas guerras. Os ucranianos estão esquecidos, claro, depois do frisson inicial. Agora o frisson são os palestinos. Talvez duas coisas permaneçam verdadeiras em meio aos escombros da pós-modernidade. Uma é o ódio, essa realidade atávica que resiste a toda música melosa e a toda jura vazia de amor à humanidade. A outra é que o grande público cansará de todas as vítimas.

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