Luiz Felipe Pondé

Escritor e ensaísta, autor de "Notas sobre a Esperança e o Desespero" e “A Era do Niilismo”. É doutor em filosofia pela USP.

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Luiz Felipe Pondé

Não se consola o luto por um filho dizendo que somos poeira de estrela

É impressionante a cegueira dos intelectuais de carreira das universidades e dos jornalistas quando o assunto é vida real

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Você acha que existe uma coisa chamada "civilização"? E mais, "civilização ocidental", que deve ser defendida dos ataques de refugiados e imigrantes ilegais? Esse é um debate tipicamente europeu. A Europa tem um problema insolúvel no horizonte: o que fazer com os "sem papéis", como se chama na França os ilegais —esta última expressão caiu em desgraça. "Não existe gente ilegal!", gritam pelas ruas.

A maioria dos intelectuais europeus adere à tese segundo a qual não existe civilização "nativa". Talvez entre aborígenes ou povos de etnia africana possa se usar a expressão, mas, melhor mesmo é "cultura", que, por sua vez, não deixa de patinar semanticamente. De fato, se olharmos a história, veremos que os povos sempre se misturaram. Esse é o argumento da professora de história antiga da Universidade de Oxford Josephine Quinn em ensaio recém-publicado no jornal britânico Financial Times.

A imagem, na horizontal, proporção 17,5cm x 9,5cm, não apresenta uma narrativa linear. Trata-se de uma composição de vários símbolos estilizados. Ao centro, um livro aberto com dois olhos e uma lupa na frente. No entorno, em preto, elementos de homens primitivos em movimento de caça com arco e flechas. Outros elementos em forma de ícones compõem a ilustração: balão de texto, lápis, beca de um formando, internet, mala, nota de dinheiro, mão com dedo acessando, proteção de rede de internet, tubo de ensaio e peão de jogo de tabuleiro.
Ilustração de Ricardo Cammarota para coluna de Luiz Felipe Pondé - Folhapress

Vale lembrar, a favor de Quinn, que o Homo sapiens é uma espécie promíscua, ainda que o compliance tente acabar com esse comportamento inadequado com as palmas dos neopuritanos da esquerda cultural.

Segundo a historiadora, a palavra "civilização" começa a circular na Europa do século 19 prioritariamente para justificar o imperialismo europeu —"somos os mais civilizados, logo, os melhores!". De lá para cá, o termo acabou ganhando ares de conceito histórico, sociológico e político, quando, na verdade, é só uma palavra inventada para justificar opressão sobre não europeus. Daí, a palavra acabou por virar clichê na boca dos europeus contra a presença da alta imigração africana ou islâmica das últimas décadas.

A professora de Oxford aponta para o engodo que é falar em "civilização greco-romana", quando nem eles se viam como um bloco homogêneo, étnico ou cultural. Assim como o politeísmo aceita qualquer deus, também esses antigos pagãos chiques, tomados como o berço da "civilização ocidental", aceitavam todo mundo, nem sempre com amor —eram grandes escravocratas. Quinn afirma que, para esses povos antigos, a vida social era feita de encontros culturais, como ela mesma diz, nem sempre pacíficos.

Para quem conhece um pouco de epistemologia —teoria das ciências— está claro que Quinn pratica a conhecida desconstrução —mostrando a ausência de solidez em coisas que muita gente acha seguro pensar e crer—, com o objetivo de combater preconceitos, racismos e xenofobia numa Europa em que grande parte da população está de saco cheio dos refugiados e do número sempre crescente de imigrantes. "Os de saco cheio" temem que seus países sejam engolidos por "essa gente" e acabam votando em gente perigosa.

Segundo o sociólogo do Québec, no Canadá, que vive em Paris, Mathieu Bock-Coté, colunista do jornal francês Le Figaro, o equívoco clássico na abordagem de intelectuais como Quinn é tomar suas explicações complexas —que ninguém duvida, em sã consciência, que sejam verdadeiras historicamente— pela realidade concreta das pessoas. Erro típico de intelectual, aliás.

O que importa para um agricultor francês —que anda bem irritado com a "ecologia punitiva" praticada pelos burocratas de Bruxelas— ou para um pequeno comerciante de uma pequena vila francesa ou para o médico de família da região ou para o pároco de província, todos cujas famílias e negócios vêm de três ou quatro gerações, com seus hábitos, casamentos, festas coletivas tradicionais, enterros e lutos, suas crenças religiosas, se o conceito de "civilização" é uma construção imperialista do século 19 ou se romanos e gregos não se viam como uma civilização pura e xenófoba? Resposta: absolutamente nada.

É como querer consolar o choro do luto por um filho dizendo que, afinal, somos todos poeira de estrela. É impressionante a cegueira dos intelectuais de carreira das universidades e dos jornalistas.

Para os que vivem ali há 300 anos, ninguém os convencerá que os conflitos com os "sem papéis", estranhos aos seus 300 anos de hábitos e costumes, não existem só porque alguém escreveu um doutorado na Sorbonne dizendo que eles estão errados.

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