Manuela Cantuária

Roteirista e escritora, é criadora da série 'As Seguidoras' e trabalha com desenvolvimento de projetos audiovisuais

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Manuela Cantuária
Descrição de chapéu Todas

Janeiro chega ao fim e o Carnaval já invade as casas e os relacionamentos

O batuque ocupa o quarto dos que sobreviveram às ondas de calor, perturbador como as batidas do coração de um monstro

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A cama do casal, um brejo: atoladiça. Os dois tentam, em vão, descansar, enquanto suas glândulas sudoríparas trabalham a todo vapor. Janeiro chega ao fim com contornos apocalípticos: ondas de calor, dilúvios e blocos de pré-Carnaval. O batuque invade o quarto, perturbador como as batidas do coração de um monstro.

Mulher sambista tocando pandeiro
Ilustração de Silvia para coluna de Manuela Cantuária - Folhapress

Ele se levanta para buscar um copo d’água. E retorna, minutos depois, transfigurado. Imundo, seminu, a pele reluzindo de suor alheio e purpurina. Confusa, ela pergunta onde ele estava. Enquanto tranca a porta do quarto, ele relata, horrorizado, que não conseguiu sequer chegar até a cozinha porque um bloco de Carnaval invadiu o apartamento.

Ela acha absurdo. Ele insiste: um bloco, com bateria, tuba, ambulante, gente pelada. Tentou expulsá-los, mas, no meio do empurra-empurra, achou que fosse desmaiar e deu meia volta. Ela sai do quarto com a promessa de acabar com aquela farra do boi. Ele acha melhor esperá-la lá dentro e ligar para a polícia, quando se dá conta de que seu celular foi furtado.

Ela irrompe pela porta envolta em apetrechos cintilantes, encarando-o com dois buracos negros no lugar das pupilas. Nunca havia reparado o quão parecido ele era com o Simba, de "O Rei Leão". Sempre se perguntou o que havia visto nele. Então era isso. O Simba era o personagem preferido dela na infância.

Ele não sabe onde ela quer chegar, mas ela sabe: na sala. Enquanto ela tenta convencê-lo a se divertir um pouco, ele percebe que ela se tornou um deles, como quando se é mordido em um filme de apocalipse zumbi. Insiste que não gosta de Carnaval e tem o direito de se isolar na própria casa. Ela compreende que ele precisa de espaço e que é chegada a hora dos dois seguirem separados.

Você está terminando comigo no meio do Carnaval?! Não é isso, ela diz. Eu só não vou conseguir transar com uma pessoa idêntica a um filhote de leão. São muitos gatilhos: zoofilia, pedofilia etc. Dragado pela DR mais disparatada que já teve, ele repara em um chupão no pescoço dela. Ela admite que conheceu outra pessoa —não sabe o nome dele, apenas que está fantasiado de Gorpo, do He-Man— e vai embora ao seu encontro.

Desolado, ele se esconde sob lençóis pantanosos. Escuta duas foliãs entrarem furtivamente no quarto. Imagina que seja esta sua redenção, ou vingança. Mas elas apenas urinam no chão e voltam para o bloco.

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